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Interessado, Palin examinava os pergaminhos ao acaso, mas era óbvio que outras coisas mais importantes lhe ocupavam a mente. Olhava-os de relance, suspirava e, com evidente relutância, voltava a colocá-los no lugar.

— Vamos lá... descubra um que possa usar! — murmurou Tasslehoff.

E pareceu que, de repente, Palin acertara. Examinando o sinete de cera na fita que unia o pergaminho e parecendo bastante animado, quebrou o selo e pôs-se a examinar o conteúdo.

Movendo-se tão sorrateiro como só um kender consegue, o que equivale a dizer que a poeira que cai no chão é tão ruidosa como ele, Tasslehoff Pés Ligeiros abandonou o pouso, atravessou o assoalho como uma sombra e subiu arrojadamente para o estrado onde se encontrava o Portal que dava para o Abismo.

— Tas, descobri aqui uma coisa interessante — disse Palin, virando-se para o lugar onde estivera o kender. A voz do mago deixou transparecer uma entoação preocupada quando deu pela falta dele. — Tas!

— Palin, olha o que eu descobri! — disse este, com orgulho. Segurando numa corda de seda dourada que pendia do reposteiro de veludo carmim, deu-lhe um puxão.

— Tas, não! — gritou Palin, deixando cair o pergaminho e precipitando-se para o kender. — Não faça isso! Pode...

Muito tarde.

O reposteiro ergueu-se, provocando uma nuvem de poeira que quase sufocou Tas.

Depois, chegaram aos ouvidos de Palin aquelas palavras agourentas — em geral as últimas que é dado escutar aos que caem na desgraça de viajar com um kender.

— Ai, ai!

27

O Grêmio dos Ladrões.

A nova aprendiz.

O Grêmio dos Ladrões, em Palanthas, bem podia vangloriar-se — e em geral o fazia, com um certo orgulho — de ser o grêmio mais antigo da cidade. Embora não vigorasse uma data oficial comemorativa da fundação do mesmo, os respectivos sócios não se enganaram muito nos cálculos. É certo que, muito antes dos forjadores de prata, dos alfaiates, dos perfumistas e de inúmeros outros grêmios que agora floresciam, em Palanthas já havia ladrões.

O Grêmio dos Ladrões remontava a épocas imemoriais, a um cavalheiro de nome Pete o Gato que, nos ermos de Solamnia, chefiara um bando de salteadores que atacavam os viajantes que percorriam as estradas. Pete o Gato (o nome não se devia ao fato de ser um sujeito calado e possuir uma graciosidade felina mas sim porque, numa ocasião, fora espancado com um gato de nove rabos[4]) era muito seletivo no tocante às vítimas. Evitava os fidalgos que viajavam com escoltas armadas, todos os magos, os mercenários e quem usasse espada. Pete o Gato declarava ser avesso a derramamentos de sangue. E era — em especial do seu.

Preferia assaltar o viajante solitário e desarmado — o latoeiro itinerante, o menestrel errante, o laborioso caixeiro viajante, o estudante pé descalço, o sacerdote pobre. É desnecessário dizer que Pete o Gato e o seu bando descobriram que é muito difícil enriquecer. Pete acalentava a esperança de, um dia, abordar um latoeiro e descobrir que este escondia, entre as vestes, um carregamento de jóias. Mas isso nunca chegou a acontecer.

Durante um Inverno particularmente rigoroso, quando o bando se viu reduzido a tal miséria que foi obrigado a comer os sapatos e os salteadores já começavam a olhar uns para os outros com ar esfomeado, Pete o Gato decidiu dar um rumo à vida. Esgueirou-se do acampamento, determinado a procurar fortuna — ou pelo menos uma côdea de pão — na recém-formada cidade de Palanthas. Quando, pela calada da noite, trepava pelas muralhas, foi bater contra um dos guardas da cidade. Os que teceram em torno do Gato uma áurea romântica, afirmam que ele e o guarda se envolveram em furiosa luta, que Pete o arremessara da muralha abaixo, o homem estatelara-se no chão e o salteador entrara triunfante na cidade.

Os que se derem ao incômodo de ler a verdadeira história de Pete o Gato, descobrirão a versão autêntica da lenda. Reza esta que, depois do guarda encostá-lo à muralha e ameaçá-lo com a expulsão, o arrojado Pete o Gato prostrara-se de joelhos, agarrara o guarda pelas pernas e suplicara-lhe misericórdia. Nesse momento, o guarda pisara num pedaço de gelo e escorregara. Como os braços de Pete lhe cingiam firmemente os joelhos, o guarda, não podendo se equilibrar, caíra da muralha abaixo, com os braços a esvoaçar.

Pete o Gato, que tivera o bom senso de largá-lo na última hora, ficara com a gelada imagem do desgraçado retida na memória. Assim, e adotando meios mais ortodoxos, descera até o chão, roubara o corpo do morto e esgueirara-se para dentro da cidade, onde assentara acampamento num alpendre para gado.

Poderia se dizer que o grêmio nasceu dos excrementos de vaca.

Pete reivindicava sempre para si a criação do Grêmio dos Ladrões, mas julgava-se ter sido a amante — uma mulher duende de nome Bet Mãos Rápidas — a verdadeira fundadora. Diz o velho ditado: “Os ladrões andam à espreita” e, à medida que a cidade ia aumentando e prosperando, também os ladrões passaram, regularmente, a “andar à espreita”. Era freqüente constatarem que a casa que assaltavam já fora saqueada na noite anterior ou, conforme aconteceu numa ocasião digna de registro, três bandos separados de ladrões reuniram-se na mansão do mesmo fidalgo, na mesma hora, para roubá-la. Isso desencadeou uma rixa entre os malfeitores e o barulho acordou o senhor da casa. O fidalgo e os criados capturaram os larápios, trancaram-nos na adega e, na manhã seguinte, enforcaram-nos. Infelizmente, Pete o Gato encontrava-se entre eles e afirma-se que, antes do fim, estrebuchou que nem um danado, embora os registros indiquem que o sujeito, ao chegar junto do patíbulo, desfez-se num pranto desatinado e teve de ser arrastado escada acima pelo pescoço.

Em conseqüência de tal desgraça, Bet Mãos Rápidas convocou o maior número possível de corta-bolsas, corta-gargantas e batedores de carteiras que conseguiu desencantar das tocas, e proferiu-lhes um inflamado discurso. Disse ela que seria muito mais proveitoso explorar os talentos de cada um, definir territórios, dividir os espólios e não se meterem nos negócios uns dos outros. Todos tinham visto os corpos dos camaradas balançando nos cadafalsos, pelo que concordaram. E nunca se arrependeram.

O Grêmio dos Ladrões revelou tal êxito que muitos e melhores talentos se puseram a caminho de Palanthas. Graças a uma liderança inteligente, o grêmio foi prosperando. Os sócios redigiram estatutos e normas de conduta aos quais todos aderiram. O grêmio recebia uma parte do espólio de cada ladrão e, em troca, proporcionava formação, álibis, que de vez em quando se revelavam consistentes em tribunal, e esconderijos para os que eram perseguidos pelos homens dos fidalgos.

A atual sede do grêmio localizava-se num armazém abandonado que ficava no interior da muralha da cidade, junto às docas. Aqui, os ladrões prosperavam há anos, na maior das impunidades. Regularmente, o Suserano de Palanthas prometia aos súditos que encerraria o Grêmio dos Ladrões. Ao longo do ano, os guardas da cidade efetuavam rusgas periódicas no armazém. À chegada, deparavam sempre com as dependências desertas. Então, o Suserano comunicava aos cidadãos que o Grêmio dos Ladrões fechara as portas. Acostumados ao discurso, os súditos teimavam em, à noite, trancar as portas e, na manhã seguinte, em fazer estoicamente um inventário das perdas.

Verdade seja dita que, embora detestando os ladrões, os cidadãos de Palanthas sentiam um grande orgulho do seu Grêmio dos Ladrões. Quem se queixava era o burguês comum, que inflacionava os preços e roubava as pessoas numa menor escala. As jovens sonhavam com salteadores de estradas bonitos e audazes, que elas, com o seu amor, resgatariam de uma vida de crimes. Os cidadãos de Palanthas desprezavam as cidades menores que não possuíssem um Grêmio dos Ladrões. Referiam-se com desdém a cidades como Flotsam, onde os ladrões eram desorganizados e — como se acreditava — em geral de uma categoria muito inferior à dos ladrões de Palanthas. Os Palancianos adoravam contar histórias sobre o nobre ladrão que, depois de entrar na casa de uma pobre viúva para roubá-la, se sentira tão impressionado com a sua triste miséria que, ainda por cima, lhe dera dinheiro. As viúvas de Palanthas bem que desejavam reivindicar para si esta história, mas ninguém as consultou.