Longe de se alegrar com uma coisa que libertaria Giuliano, Fiora sentiu uma piedade brusca e profunda. Permitiria o Criador que uma doença qualquer arruinasse, na flor da idade, uma das suas obras mais bem acabadas? Simonetta era demasiado jovem e demasiado alegre para que, olhando para ela, se evocassem as trevas da tumba.
A sensação de uma presença por trás de si fez virar a jovem tão bruscamente que ela embateu numa personagem que nunca tinha visto antes.
Oh! Desculpai-me! disse ela em francês. O homem não pareceu ter-se apercebido fosse do que fosse. Os olhos que ele tinha pousados no casal Giuliano-Simonetta nem sequer pestanejaram.
No entanto disse ele é fatal. Achais, jovem, que monna Simonetta é demasiado jovem para morrer? É que seria uma pena...
Como podeis saber uma coisa dessas? sussurrou Fiora, estupefacta.
Não sei: sinto-o, ouço-o. Acontece-me, por vezes, ouvir os pensamentos das pessoas. Quanto àquela jovem, lembrai-vos do que vos digo esta noite: ela não vive mais de 15 meses. Nessa altura Florença viverá uma aflição, mas vós não a vereis.
Uma súbita angústia secou, de repente, a garganta de Fiora.
Porquê? Estarei... também morta, eu?
Os olhos escuros do desconhecido mergulharam nos da jovem e esta teve a impressão bizarra de que ele conseguia ler tudo o que lhe ia na alma.
Não... mas lamentá-lo-eis, talvez, porque estareis longe e não me parece que estareis feliz.
Estarei... longe? Mas, onde...
Ele interrompeu-a com um gesto da sua mão ossuda e afastou-se de imediato. Fiora viu o seu traje negro, semelhante aos usados pelos médicos, afastar-se por entre os alegres vestidos de festa, mas conseguiu seguilo através das salas iluminadas, porque era um homem muito grande e a sua cabeça, na qual havia um gorro alto com um gancho dourado dominava
1 Contracção de Madonna.
quase todas as outras. Fiora teve vontade de se lançar atrás dele, mas não foi capaz, porque as palavras que ele acabava de pronunciar tinham-na gelado por completo. Havia nelas uma ameaça imprecisa que a assustara, porque escapava ao entendimento humano.
A voz familiar de Chiara tirou-a daquela espécie de abatimento e fê-la estremecer.
- Trago-te um infeliz que nem sequer ousa apresentar-se, porque está persuadido de que tu o desprezas. Assegurei-lhe que o teu coração não é assim tão duro.
Fiora olhou, sem na realidade os ver, para a sua amiga e para o jovem Tornabuoni, que, de imediato, perante a palidez do seu rosto, se inquietaram. Chiara meteu o braço no da amiga para a amparar.
- Que te aconteceu? Estás doente? Estás a tremer... Vai-lhe buscar um copo de vinho, Luca! Ela vai desmaiar.
O jovem correu na direcção de um dos grandes bufetes, dispostos em cada extremidade dos salões, não sem se virar várias vezes e sem se preocupar com os encontrões que ia dando pelo caminho. Entretanto, Chiara conduzia a sua amiga até ao vão de uma janela para a fazer sentar num banco guarnecido de almofadas. Fiora passou uma mão ainda trémula pela fronte e depois sorriu para o rosto inquieto e inclinado para si.
-Já estou melhor, tranquiliza-te. Não sei o que me deu, creio que tive medo.
- Medo, tu, que nunca te assustas? De quê, meu Deus?
- De um homem que nunca tinha visto, mas em quem tu, talvez, tenhas reparado. É muito grande, um pouco curvado. Tem um rosto moreno bem enquadrado por uma barba curta e por uns cabelos grisalhos e olhos da mesma cor do rosto. Tem um traje negro e um gorro alto... Ainda há uns instantes estava aqui.
- Com efeito, vi alguém que corresponde a essa descrição, mas ignoro o seu nome. Por que tens medo dele?
- Porque me disse coisas terríveis. Segundo ele, Simonetta morrerá no ano que vem. Quanto a mim, estarei longe daqui e não estarei feliz.
Uma pequena chama acendeu-se no olhar trigueiro de Chiara.
- Um adivinho? Isso é maravilhoso! Tenho de lhe falar, absolutamente, para que me diga...
A jovem já se preparava para ir no encalço do homem. Fiora reteve-a com uma mão firme.
Fica aqui! Ele não é um homem a quem se pergunte pelo futuro. Quando ele olha para ti, gela-te o sangue. E, peço-te: nem uma palavra acerca do que te disse. Chiara condescendeu, mas, pela sua expressão, Fiora viu bem que não ficara convencida. Felizmente, Luca estava de regresso com um copo de vinho Malvasia, pelo qual Fiora não tinha, aliás, qualquer desejo, mas do qual bebeu algumas gotas para dar prazer ao seu apaixonado, que olhava para ela com olhos de cão fiel, feliz por constatar que um pouco de cor já regressava aos olhos da jovem.
Isso vai melhor, não é verdade? E agora, quais são as ordens...
Tenta saber quem é uma determinada pessoa que nos interessa muito! disse Chiara, que continuava com a ideia fixa.
Qual pessoa? A jovem lançou-se numa descrição tão fiel quanto possível, porque já em segunda mão. Fiora deteve-a:
Não te canses. Estou a vê-lo a falar, além, com raesserPetrucci... Luca virou-se, olhou na direcção indicada e franziu o sobrolho.
O magistrado municipal é a última pessoa com quem o feiticeiro devia conversar. É ele que abre o caminho que vai dar à fogueira...
Um feiticeiro? E tu conhece-lo?
Eu não o conheço, mas sei que é precisou Luca altivamente! O que não é a mesma coisa...
Pouco importa! Fala, já que sabes, em vez de nos deixares em brasa.
Bela palavra quando se trata de um adorador do diabo! troçou o jovem. Bem, ficais a saber, belas curiosas, que aquele homem chama-se Demétrios Lascaris. É um médico grego e o meu primo Lourenço tem-no em grande estima por causa do seu saber. Espera que este Lascaris, que pretende descender dos imperadores de Bizâncio, lhe devolva o olfacto de que foi privado e presenteou-o com uma casa perto de Fiesole. Mas dizem que se passam lá coisas estranhas... que evocam lá o diabo!
A voz de Luca baixava de tom à medida que falava e acabou num sussurro dramático. O que teve o dom de irritar Fiora:;
Nós temos uma villa em Fiesole e nunca ouvimos falar nesse médico grego. Quando um homem sai da mediania, é espantoso o que se diz dele...
1 Com efeito, o Magnífico não tinha olfacto.
2 No sentido antigo do termo.
Para mal dos seus pecados, a jovem foi incapaz de dizer a razão que a levara a tomar, de repente, a defesa de um homem que a assustara tanto uns instantes antes. Talvez porque, educada pelo seu pai na escola da filosofia grega, achava chocantes aqueles comentários supersticiosos. O homem era extraordinário, sem dúvida e parecia ter o dom estranho da adivinhação. Mas daí a associá-lo a um dos feiticeiros delirantes que floresciam em certas aldeias à volta de Florença, era de mais!
- Talvez seja melhor não espalhar esse género de boatos - acrescentou ela. - Espantar-me-ia muito que monsenhor Lourenço, inteligente e de espírito profundo como é, protegesse uma criatura demoníaca qualquer!
- Que mosca te mordeu? - protestou Chiara. - Olha para este infeliz, que tu não cessas de maltratar. Até tem lágrimas nos olhos...
- Nesse caso, que me perdoe. Estou nervosa, esta noite, um pouco irritada, talvez. - disse Fiora levantando-se. - Há dias e este é um deles, em que parece que nada me agrada.
- Infelizmente - disse Chiara - eu apanho sempre com esses dias!
Fiora desatou a rir e para consolar um pouco o seu adorador malfadado acariciou-lhe a face com a ponta do dedo: