Suavemente, tomando cuidado para não a acordar, a governanta endireitou a jovem, que, do fundo do seu sono, murmurou palavras indistintas e sorriu, mas, uma vez em cima da almofada, enroscou-se, como uma gata feliz por encontrar o seu ninho. Léonarde cobriu-a e depois, dando a volta ao leito, aproximou-se de Philippe, pousou-lhe uma mão no ombro e abanou-o docemente, inclinando-se sobre a sua orelha.
Messire sussurrou ela. Tendes de vos levantar! São horas... Habituado desde a infância pelo duro treino cavaleiresco a dormir em qualquer parte e a acordar ao primeiro chamamento, Philippe virou-se de imediato e olhou para a governanta com olhos quase lúcidos...
Que dizeis? grunhiu ele.
Shhhh!... Digo que o dia está a nascer e que a vossa escolta está quase pronta. Messire de Prames está a tomar o pequeno-almoço.
Já?... Por que partir tão cedo?
Vós é que sabeis. Para não chamar a atenção. Não decidistes assim com messire Francesco?
Com efeito... mas isso foi antes...
O jovem inclinou-se para Fiora para a beijar, mas Léonarde deteve-o:
Não a acordeis! Assim é mais fácil...
Quereis que eu parta... sem lhe dizer adeus?
Sim. É melhor para ela... e para vós! A menos que queirais ficar com a recordação de um rosto desfigurado pelas lágrimas?
Não!... Não, tendes razão...
Philippe levantou-se com um movimento ágil que não abanou o leito e bocejou, espreguiçando-se com grandes movimentos, não se preocupando em esconder um corpo onde se viam cicatrizes de antigos ferimentos e ligeiras arranhadelas deixadas pelas unhas de Fiora. Antes de pegar no roupão com que entrara na véspera naquele quarto, virou-se para a jovem que dormia tranquilamente na massa negra dos seus cabelos desordenados com uma mão numa das faces e concedeu a si próprio uns últimos instantes de contemplação... com as grandes olheiras azuladas que marcavam os seus belos olhos de pálpebras fechadas, ela pareceu-lhe mais bela do que nunca e ao pensar que nunca mais a veria algo lhe apertou a garganta... Seria uma coisa muito doce passar uma vida inteira junto dela, mas o pacto, cujas cláusulas fora ele próprio a ditar, só lhe concedia uma noite... Inclinando-se rapidamente, pegou numa mecha de cabelos e pousou nela os lábios...
Adeus!... murmurou ele... adeus, meu doce amor! Endireitando-se, viu que Léonarde, com ar bizarro, lhe estendia um par de tesouras... Ele pegou nele com um sorriso que perturbou a velha dama. Ela não imaginava que aquele homem, do qual não pensava nada de bom, pudesse ter aquele sorriso de criança maravilhada.
Obrigado! disse Philippe.
O borgonhês cortou uma pequena mecha que guardou na concha da mão e depois, entregando a tesoura a Léonarde, pegou no seu vestuário e abandonou o quarto sem se virar. Só com Fiora adormecida, Léonarde puxou suavemente as cortinas do leito para que a luz do dia que começava a nascer não acordasse a jovem e abandonou o quarto na ponta dos pés...
Entretanto, no grande vestíbulo de grandes lajes de mármore branco e negro, Philippe de Selongey dispunha-se a despedir-se de Beltrami, Que o esperava na base da escadaria.
Tendo deitado pela cabeça abaixo uma bacia de água fria, como ° atestavam os cabelos ainda húmidos, Francesco conseguira afastar os vapores da embriaguez, mas os seus olhos continuavam injectados de sangue ao verem o borgonhês, calçado e envolto no seu grande manto de montar, descer os últimos degraus, notando com cólera que ele tinha a expressão de um homem que não dormira praticamente nada e que o seu passo parecia mais pesado... Aparentemente, aquela única noite que Selongey exigira fora em cheio e Beltrami sentiu em si um furor insano. Teve vontade de subir àquele quarto onde a sua bela Fiora jazia talvez ferida, ensanguentada, doente de desgosto, depois de ter servido de brinquedo durante horas à impiedosa luxúria daquele homem, mas avistou Léonarde, que das sombras densas do andar superior descia lentamente e conteve-se à custa de um violento esforço. Apenas uma coisa era urgente: que aquele bruto desaparecesse para sempre no horizonte! À força de ternura, saberia fazer esquecer àquela criança o sofrimento por que tinha passado.
Com uma voz que se esforçava por manter firme, perguntou:
Dissestes-lhe adeus?
Não... ela dorme e eu não quis acordá-la. Dizei-lhe vós adeus por mim... Dizei-lhe...
O quê? ralhou o negociante.
Philippe emitiu aquele seu sorriso engraçado que lhe repuxava a boca só para um lado e encolheu os ombros.
Nada! Não saberíeis o que dizer...
De qualquer modo, não lhe diria nada! E farei tudo o que estiver ao meu alcance para que ela vos esqueça... o mais depressa possível! Vós quisestes uma noite, tiveste-la. Agora, resta-vos cumprir a vossa promessa e deixardes-vos matar!
Eu prometi isso? perguntou Selongey com altivez.
Parece-me que sim! Já esquecestes as vossas palavras? Depois da nódoa que um casamento com a minha filha impõe à vossa honra, não tendes outra solução senão lavar essa nódoa com o vosso sangue. Mudou alguma coisa?
Nada mudou! Como apresentar na corte de monsenhor Carlos uma esposa que é praticamente igual a uma mãe executada por incesto e adultério?... Não, nada mudou, mas não imaginais até que ponto o lamento!
Aparentemente, esta noite não foi suficientemente longa? perguntou Beltrami com um sorriso sarcástico. Talvez imagineis que vos convido a regressar?
Philippe olhou por um momento em silêncio para aquele homem cujo sofrimento compreendia subitamente. Percebeu como aquelas bodas estranhas lhe tinham perturbado o espírito. Sem dúvida, o florentino acabara de descobrir que o seu amor paternal não era tão paternal como isso e Philippe sentiu mais piedade do que irritação:
Não receeis! Não procurarei regressar, porque perderia a minha alma. Ficai a saber que vivi durante algumas horas toda a felicidade que poderia esperar. Nunca esquecerei esta noite... e espero que Fiora também não! E agora, adeus, messer Beltrami! Cuidai bem dela!
Cobrindo as mãos com as grandes luvas que levava à cintura, Philippe dirigiu-se para a porta, mas Beltrami deteve-o e, tirando do seu longo traje de veludo negro um rolo de pergaminho selado, estendeu-o ao jovem.
Um instante, senhor conde! Esqueceis-vos disto. Não é este o preço dessa famosa nódoa que vos suja a honra?
Philippe empalideceu e esboçou um gesto de recusa. Hesitou:
Gostaria de vo-la poder atirar à cara, a vossa letra rugiu ele mas monsenhor Carlos precisa desse ouro. Mas ficai tranquilo! Esta soma ser-vos-á devolvida e com juros, quando a minha mulher, depois da minha morte, herdar os meus bens.
Raivosamente, o jovem arrancou o rolo das mãos de Beltrami, meteu-o dentro do gibão e saiu a correr, perseguido pelo riso irónico do negociante. Atravessando uma pequena parte do jardim que o amanhecer tornava acinzentado, dirigiu-se para as instalações dos criados, onde os seus homens o esperavam e onde Frames já se encontrava.
De pé na zona sombria da escadaria onde a altercação dos dois homens a tinha gelado, Léonarde fez um rápido sinal da cruz ao ouvir diminuir o som dos passos daquele estranho marido que tinham dado a Fiora. O que acabava de ouvir explicava muita coisa e percebeu os termos daquele contrato, pelo qual uma criança fora atirada para os braços de um homem que nunca vira antes. A velha dama desceu lentamente os últimos degraus e juntou-se a Beltrami, que, na soleira da porta, apontava um punho furioso para um jardim vazio.
Ele sabia, nesse caso? perguntou ela docemente. Francesco, que esquecera a sua presença, estremeceu e olhou para ela sem dizer nada. O seu braço caiu, sem força, ao longo do traje. Encolhendo os ombros, suspirou, por fim: