Espera! disse ela com a voz oprimida...
Que é que se passa? Estás doente?
Não... não, mas tenho uma sensação bizarra... Há pouco, disseste que eu estava a olhar para a cidade como se a visse pela última vez...
Sim... mas foi uma brincadeira. Disse aquilo porque tu tinhas uma expressão de avidez... como se quisesses absorver aquilo tudo com os olhos. E tu respondeste-me...
Eu sei... mas agora pergunto a mim própria se não terás tido razão. Sinto qualquer coisa que me diz... que não regressarei a este local!
Que loucura! Continuas a pensar na profecia do médico grego?
Não. Juro-te que não... nem sequer pensei nele... mas tive como que um pressentimento, como se Florença se me tornasse, subitamente, hostil... me rejeitasse, a mim, que a amo tanto!
Achas que ela te quer mal porque amas um estrangeiro, quando tantos dos seus filhos suspiram por ti? Expulsa essas ideias! Tens vivido demasiado retirada, estes últimos tempos. O que precisas é de uma bela festa, onde brilhes com todo o teu fogo e onde o grande Médicis dance mais uma vez contigo! Ora ai está! É isto, precisamente, o que te falta!
Com efeito, um grupo de jovens, conduzidos por Luca Tornabuoni em alegre cavalgada, desembocava no pequeno adro da igreja.
Tinha a certeza que vos encontraria aqui disse o jovem saltando para terra e tirando o chapéu. Não é neste dia do ano que colheis flores para a Madona?
E vós vindes ajudar-nos? perguntou Chiara, rindo-se.
A levar tudo isso? Certamente. E também para vos escoltar até ao Duomo, para juntarmos as nossas orações às vossas!
Eis-vos bem piedoso, ser Luca! disse Léonarde, que se juntara ao grupo. Cria-vos um discípulo fiel de Platão e eis que falais da Madona como se quisésseis entrar para um convento.
Nunca desejei tal coisa e há um tempo para Platão e um tempo para rezar. Parece-me acrescentou ele olhando ternamente para Fiora que se me ajoelhar aos Seus pés na companhia de certa jovem ela ouvirá melhor as minhas preces...
Esperava uma risada da jovem, mas esta desviou os olhos, incomodada com a imagem que ele evocara e fez como se não tivesse ouvido. Pensando, então, que fora demasiado arrojado, o jovem foi buscar o cavalo de Fiora e ajudou-a a subir para a sela:
Algo me diz que hoje não estou inspirado, Fiora murmurou ele procurando-lhe o olhar mas queria tanto que me autorizásseis a enviar o meu pai para falar com o vosso! Eu sei que ele vos acha ainda muito nova, mas se, pelo menos, nós fôssemos noivos... eu esperaria o tempo que vós desejásseis! O ânimo não nos falta, quando sabemos que podemos ter esperança!
Pela primeira vez ela olhou para ele com uma espécie de ternura. Ela, que só podia viver de esperança, podia compreender o que sentia o jovem, mas não tinha o direito de lhe dar qualquer esperança.
Não me faleis mais disso, Luca! Perdeis o vosso tempo e o vosso coração comigo. Eu não quero deixar o meu pai e...
... e não me amais! Como vedes, completo a vossa frase. Digo o que vós não ousais dizer. Mas, se não me amais no momento, talvez me ameis mais tarde. Vós mesma o dissestes: ainda sois muito nova... Não! Não digais mais nada! Estamos na Primavera e o tempo está lindo. Deixai-me continuar a sonhar!
O jovem regressou para o seu cavalo e o pequeno bando, carregado de grandes ramos e folhas perfumados desceu na direcção da cidade, ao mesmo tempo que um dos rapazes cantava um romance em honra da Primavera. Todos cantaram o refrão em coro e todos riram muito, mas Fiora não conseguiu afinar pelo mesmo diapasão. À medida que avançavam, a tristeza que se apoderara dela em San Miniãto acentuava-se, E juntava-se a ela uma impressão de perigo iminente. Supersticiosa como todas as boas Florentinas, lembrou-se que Philippe estava na guerra, portanto em perpétuo perigo, mas que corria um perigo talvez maior e o seu amor pressentia-o como uma premonição... Em breve, toda aquela alegria que a rodeava se lhe tornou insuportável e quando passaram a Ponte Vecchio, onde àquela hora do dia os talhos estavam fechados, pretextou um súbito mal-estar e, sem mesmo permitir que Chiara a acompanhasse não era preciso que pelo menos uma das apanhadoras fosse levar as flores? tomou o caminho de casa com Léonarde e Khatoun. Tinha pressa de chegar, agora, sem poder dizer de onde lhe vinha a impaciência. Mal respondeu à saudação alegre que lhe dirigiu Gian-Battista di Rinaldo, um barqueiro do rio que Beltrami tinha salvado da ruína e de cujo filho ela era madrinha.
Não lhe queirais mal gritou Léonarde, desejosa de apagar o que o bravo homem pudesse considerar como uma ofensa donna Fiora não está bem e eu vou levá-la para casa!
Que Deus a abençoe e lhe devolva a saúde. Lá em casa rezaremos por ela, esta noite!
De qualquer maneira, umas orações não nos farão mal resmungou Léonarde, devorando Fiora com os seus olhos inquietos. Que se passa, minha querida? Estais mesmo doente? Na verdade, estais muito pálida...
Sim... não... não sei. Mas tenho de voltar para casa. Quero ver o meu pai!
Estais preocupada porque ele vos disse esta manhã que se sentia um pouco fatigado? Creio que exagerais...
Fiora não respondeu. De que serviria? Se dissesse que tinha o pressentimento de que uma infelicidade a esperava no palácio, Léonarde, com o seu sólido bom senso, esforçar-se-ia por lhe demonstrar que estava enganada. Aliás, estavam a chegar...
Dir-se-ia que o vosso pai tem visitantes! observou Léonarde apontando para uma mula elegantemente ajaezada de vermelho e duas outras mais modestas, que esperavam placidamente presas junto do apeadeiro de cavalos. Deus me perdoe! Creio que é a equipagem habitual da vossa prima Hieronyma. Que vem ela cá fazer? As suas visitas nunca trazem nada de bom acrescentou a governanta, que guardava na memória as ameaças formuladas contra Fiora na loja do boticário Landucci.
Com efeito disse Fiora mas não tardaremos a saber. Saltando para terra por baixo da abóbada do palácio, Fiora atirou as rédeas a um criado e atravessou rapidamente o pátio interior, onde, com efeito, esperava a seguidora habitual de Hieronyma e um dos seus criados. A jovem subiu a escadaria a correr e quase deu um encontrão em Rinaldo, que era o criado particular de Francesco Beltrami, depois de o ter sido do seu pai.
Onde está o meu pai? perguntou ela.
Na sala do Órgão, donna Fiora, mas não está só.
Eu sei com quem ele está. Obrigada, Rinaldo!... disse a jovem um pouco surpreendida, porque a sala em questão, tal como o studiolo, era um dos locais privilegiados para onde o negociante gostava de se retirar. Aprendera em criança a tocar órgão e, de tempos a tempos, isolava-se naquela grande sala, que, com as suas paredes pintadas com frescos e o chão de mármore sem tapetes, tinha a ressonância de uma capela. Que recebesse nela uma prima de quem gostava pouco não era habitual, mas talvez tivesse sido surpreendido pela chegada inesperada da dama.
Quando se aproximou da porta, Fiora ouviu vozes e refreou o andamento. Se discutia com Hieronyma, talvez Beltrami não ficasse contente por ver chegar a filha... Então, docemente, muito docemente, a jovem entreabriu a porta e a voz do seu pai, vibrante de cólera, chegou até ela facilmente:
Nunca, ouves, nunca darei a minha filha ao teu filho! Tenho muita pena daquele infeliz rapaz, que não é responsável pelo seu físico, mas não se pode pedir a uma mulher jovem e bela que passe a sua vida com um marido como ele.
Porque é coxo e disforme? Pelo menos, Piero é nobre e de nascimento puro. Não é um bastardo!
Creio que nunca ninguém pensou em reprovar a Fiora a sua bastardia e creio, também, que toda a gente sabe isso!
É verdade... mas nem toda a gente sabe tudo...