Não tenhas medo sussurrou Demétrios. Com ela não temos nada a temer. Aliás, ela evitou a grande sala... E já estamos quase lá fora...
No fim de um último corredor, Pippa abriu uma porta e afastou-se para deixar passar os seus companheiros. Em seguida, voltou a fechá-la. Com uma alegria infinita, Fiora olhou para o grande céu azul-escuro, ponteado de estrelas, no qual o intervalo das silhuetas das casas encostadas umas às outras da ruela formava fitas cintilantes. A jovem respirou a plenos pulmões o ar húmido que arrastava odores de peixe, azeite e madeira queimada e apertou com mais força a mão de Demétrios:
Como agradecer-te... começou ela, mas ele fê-la calar-se.
Mais tarde teremos todo o tempo para conversar. Por agora, temos de nos abrigar até ao fim da noite. Ao nascer do dia, quando as portas forem abertas, levar-te-ei para minha casa, em Fiesole...
Onde vamos?...
A casa do amigo a quem devo este espólio... e outras coisas...
Os dois saíram da ruela com infinitas precauções e só quando tiveram a certeza de que o passo da milícia se afastava, em lugar de se aproximar. Na sua frente estendia-se o que parecia um amontoado de ruínas e que, de facto, era um estaleiro inacabado: o de um grande palácio que só tinha o rés-do-chão e uma parte do primeiro andar, mas que não deixava de ser impressionante pelas pedras enormes, meio desbastadas, rugosas e bárbaras da sua construção. As pessoas do bairro não se aproximavam dele porque tinha má fama. O homem que o quisera construir, Luca Pitti, um dos homens mais ricos de Florença, pedira os planos a Brunelleschi, o arquitecto genial que tinha erigido o Baptistério e coroado o Duomo com a sua enorme bolha cor de coral. Queria-o como o maior, o mais rico da cidade, à altura da sua ambição desenfreada. Após a morte de Cosimo, o avô de Lourenço, Pitti conspirara com Soderini, o administrador municipal de então, para arrancar o poder das mãos mais fracas de Piero o Gotoso, filho de Cosimo, mas a conspiração fracassara e Pitti, arruinado e exilado, morrera longe da cidade amada. A imaginação popular, que não se satisfazia com um fim simples, pretendia, em voz baixa, claro, que os restos mortais de Luca Pitti, assassinado pela gente dos Médicis, estavam enterrados sob o seu palácio inacabado e como as lendas têm vida longa, as mulheres benziam-se ao passar pelos muros enormes e pelas grandes arcadas vazias, para onde abriam os olhos cegos das grandes janelas rectangulares. Ninguém se atrevia a ir buscar uma daquelas pedras abandonadas, que diziam malditas. Aquilo durava há 35 anos...
No entanto, Demétrios arrastou a sua companheira pelo meio do estaleiro abandonado sem se deixar impressionar pelo temor que ela manifestava.
Uma rapariga cujo espírito foi iluminado pela luz grega não se deixa perturbar por uma lenda idiota! disse-lhe ele à guisa de conforto...
Um arrastando o outro contornaram o palácio, encontraram um esboço de jardim que deveria estender-se sobre uma colina e entraram por uma das portas que nunca tinham recebido batentes. Tacteando na
1 O palácio Pitu foi recuperado e a sua construção terminada um século mais tarde por Cosme de Médias
escuridão, Demétrios viu um fino raio de luz filtrando-se por baixo de um conjunto de pranchas e bateu segundo um código particular. Do interior, uma voz áspera perguntou:
Quem vem lá?
Mendici
Aquilo que fazia de porta abriu-se, descobrindo o que deveria ter sido uma divisão de serviço. A luz provinha de um pequeno fogo aceso no meio, no solo de terra batida. Quanto àquele que acolheu os visitantes, era um homenzinho esquelético, cujo rosto pergaminhado estava ornamentado com uma barba rala e onde se enquadravam uns longos cabelos grisalhos. O homem deitou uma rápida olhadela aos visitantes e voltou a acocorar-se junto do fogo para mexer algo dentro de um pote de argila:
Parece que conseguiste?
Sim. Graças a ti, Bernardino. Mas foi mesmo a tempo. Tive de matar Pietro Pazzi. Tinha sido ele que tinha mandado raptar Fiora e ia estrangulá-la quando cheguei. A esta hora Pippa e o irmão devem estar a atirá-lo ao Arno com algumas pedras, para evitar que volte a subir.
Menos um bandido! aprovou o velhote. Quanto a ti, rapariga, sê bem-vinda! Estás em casa de um amigo... aliás, tu conheces-me, porque me deste esmola várias vezes.
A jovem lembrava-se, com efeito, daquele velhote, que mendigava sempre perto das portas do Duomo, lamuriando sempre a mesma queixa...
Agradeço-te disse ela mas... eu pensava que eras cego e surdo?
Ele riu docemente e depois explicou com orgulho que era preciso uma grande experiência para conseguir não mostrar senão o branco dos olhos e que não era difícil parecer surdo.
E agora podes dormir um bocado, porque deves precisar. A minha cama é esta acrescentou ele apontando para um dos montes de trapos que serviam de móveis à sua casa. Quando o galo cantar, acordo-te...
Tu acolhes-me em tua casa e, portanto, arriscas a vida. Suponho que sabes isso?
1 Mendigos
Arrisco menos do que imaginas, garota. Não ligues ao cenário miserável em que vivo, porque disponho de um poder que faria inveja a muitos príncipes. A confraria dos mendigos, a mais numerosa que há, é reconhecida em todo o Mediterrâneo e para lá dele através da única palavra MendicHe eu reino sobre os de Florença: os estropiados verdadeiros ou falsos, os carteiristas e os mendigos de toda a espécie. É um exército cujos golpes, por serem dados muitas vezes nas trevas, não são menos temíveis. Quando estala um motim, nós estamos sempre no coração da agitação. Mas, vê lá tu, esta vida que me é tão cara devo-a ao homem que te acompanha, porque o seu saber salvou-me. E Bernardino paga sempre as suas dívidas!... E agora dorme e tapa as orelhas, porque nós temos de conversar, o grego e eu...
Estendida sobre o monte de trapos malcheirosos como sobre as almofadas mais suaves, Fiora, esquecendo o seu corpo arranhado e a garganta dorida, caiu quase de imediato no sono mais profundo. A alguns passos dela, acocorados um em frente do outro de cada lado da fogueira como estranhas aves nocturnas, o médico grego e o rei dos mendigos entretiveram-se em voz baixa com os seus negócios subterrâneos até às primeiras luzes da madrugada. Quando o galo fez ouvir o seu canto, Demétrios tirou de sob os seus farrapos um punhado de florins, que pousou na garra do seu companheiro. Em seguida levantou-se e abriu os longos membros:
Achas que consegues? perguntou ele.
O outro encolheu os ombros e passou as moedas de ouro de uma mão para a outra com deleite:
É o bê-á-bá da profissão. Dentro de duas horas, o clamor de que a rapariga não fugiu do convento e foi, em vez disso, raptada correrá por todos os adros e mercados com tanta velocidade como o vento suão.
Tens a certeza que nem tu nem os teus irmãos se arriscam a cair nas mãos do Bargello?
Não se pode parar o vento. Nasce sem que se saiba porquê nem de onde vem e passa, mas nós faremos com que não se extinga demasiado depressa. Não tenhas receio! Nós somos hábeis e as comadres ganharão bem o seu dinheiro.
Demétrios abanou a cabeça, sorriu e foi acordar Fiora. Uma hora mais tarde, depois de terem atravessado toda a cidade no meio de carroças de legumes e de criação a caminho do mercado, transpuseram, perante a indiferença geral e sem que os soldados de guarda lhes concedessem um olhar, a porta Pinti que dava para Fiesole, percorria o muro do convento dos Camáldulos e o do maravilhoso jardim de la Badia, construído outrora para Cosimo de Médícis.