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Era a primeira grande cerimónia celebrada na catedral profanada pelo assassínio de Giuliano. Na antevéspera, o arcebispo de Florença purificara cerimoniosamente a igreja-mor com grandes quantidades de água benta e incenso.

Depois da missa, toda a gente regressou a suas casas para recobrar forças com vista às cerimónias da tarde e à grande corrida que teria lugar ao fim do dia. Àqueles que não podiam oferecer a si próprios uma refeição digna de um grande dia, uns cabazes, em plena rua, distribuíam graciosamente empadas e pastéis. E, para acompanhar esse festim, os fontanários da cidade deixavam escorrer vinho de Chianti em vez de água. Para ajudar à alegria geral, bandos de músicos, tocando viola, pífaro ou tamborim, percorriam as ruas e detinham-se nos cruzamentos... o mais perto possível dos fontanários.

Da tribuna das damas, onde tinham tomado lugar para apreciar a procissão e seguir o melhor possível o ofício divino através das portas completamente abertas, Fiora viu Lourenço vestido de negro como era seu hábito, mas usando ao pescoço uma cadeia de ouro e rubis que valia um tesouro real. Uma jóia brilhava no seu gorro. Junto dele caminhava um homem louro em cujo capuz brilhava uma flor-de-lis e Fiora não teve qualquer dificuldade em reconhecer Philippe de Commynes. Caminhava com a dignidade própria de um embaixador de França. Logo a seguir a jovem viu, sobre a multidão, um certo gorro vulgar encimado por uma pena de garça-real que lhe acelerou o coração. Seria possível Douglas Mortimer ter feito, também ele, a viagem? Por que não, no fim de contas? Luís XI gostava demasiado do seu conselheiro para o deixar partir sem uma guarda sólida para aquela Itália turbulenta. E que guarda mais sólida, mais eficaz, do que o sargento la Bourrasqué?

Teve vontade, subitamente, de ir ter com os seus amigos, mas não podia imiscuir-se na ordem rigorosa das cerimónias. Era preciso regressar ao palácio Albizzi para a refeição do meio-dia na companhia de ser Lodovico, que não cessava de resmungar contra a futilidade das manifestações mundanas que estragavam um dia que o Criador tinha, forçosamente, destinado especialmente às alegrias austeras da ciência. O ancião ia tanto mais rabugento quanto tivera que trocar o seu bibe de tela verde, tão cómodo, por um soberbo traje de espessa seda escarlate com uma orla de pele de marta negra, a despeito da estação e por um capelo do mesmo tecido, cujo pano se enrolava graciosamente em redor do seu pescoço. Uma pesada corrente de ouro, terminada por quimera, completava um traje que, evidentemente, ele detestava:

Ainda se fosse Inverno, mas durante a tarde vou transpirar tanto que a minha camisa e a minha pele ficarão da mesma cor desta maldita túnica!

Podes tirá-lo para dormir a sesta e eu dei ordem a Colomba para refrescar o teu vinho favorito disse Chiara, consoladora. Mas tu não enganas ninguém, tio Lodovico. Tu és demasiado Albizzi para te mostrares senão vestido de acordo com a tua posição.

Apesar do calor, o ancião fez as honras ao repasto composto de melões e fegatelli, pequenas salsichas de fígado com ervas, que regou com grandes copázios de Chianti. Um festim que o obrigou a repousar um pouco na frescura do seu quarto enquanto não chegava a hora de ir para uma das tribunas de onde os notáveis da cidade contemplariam a corrida do Palio.

Após a manhã, reservada às corporações que davam a Florença toda a sua riqueza, a tarde pertencia aos diferentes bairros da cidade, cujos campeões se defrontavam numa corrida de cavalos, montados sem sela e sem estribos num percurso preparado antecipadamente. O prémio era o palia, uma magnífica peça de tecido, a mais bela de toda a cidade, que o Magnífico entregava ao vencedor.

Cada bairro apresentava quatro estandartes sob cujas cores corriam quatro cavaleiros. Os estandartes do bairro San Giovanni (São João) eram o Leão Negro, o Dragão, as Chaves e o Esquilo; os da Santa Croce o Carro, o Boi, o Leão de Ouro e as Rodas; os de Santa Maria Novella a Víbora, o Leão Vermelho, o Leão Branco e o Licórnio; por fim, os do Santo Spirito, o bairro da outra margem do Arno, a Escada de mão, a Concha, o Chicote e a Quimera. E todos esses estandartes, alegremente coloridos, com os seus servos e muitas velas, iam em procissão até ao Baptistério.

1 Apenas Siena conservou esse fabuloso espectáculo admirado em toda a Europa.

A reunião acontecia diante da Senhoria, vestida com os adereços dos grandes dias de festa. O Velho Palácio cinzento estava cheio de estandartes e sedas. Entre as suas seteiras, uns mastros erguiam para o céu azul os emblemas das cidades vassalas, o de Florença ocupando o topo da torre como convinha a uma rainha. Em redor da praça onde tinham sido erguidas torres de madeira dourada representando as cidades vassalas ou aliadas, as janelas mostravam rios de brocados ou tapeçarias. A calçada, essa, parecia uma pradaria na Primavera com a mistura de trajes de gala e estandartes. Um largo espaço vazio, marcado por cordões de seda, cortava a praça: a passagem por onde galopariam, dentro em breve, os cavaleiros. O ar estava cheio de alegria, da excitação dos desafios lançados pelos portadores dos imensos estandartes. Estes faziam dançar e voar, a despeito do seu peso, os pesados tecidos pintados e bordados.

Na praça do Duomo, onde as grandes portas de bronze dourado do Baptistério deixavam ver a floresta de círios que o iluminavam, o espectáculo era diferente. Ali erguiam-se as tendas furta-cores dos proprietários dos cavalos que iam correr e, em redor, uns mastros, tão altos como as casas, ostentavam, alternadamente, o estandarte branco com o Lis vermelho de Florença e o estandarte azul com os Lis dourados do Rei de França.

A música dos grandes órgãos, das violas, das flautas, dos oboés e dos tamborins da catedral, apoiando o coro com maestria, enchia a praça e de cada lado do arcebispo, cuja capa de ouro era mantida aberta por dois diáconos, os acólitos balouçavam uns incensórios de prata. Estes deviam estar cheios até às bordas, porque as espessas volutas de fumo que se escapavam pelos orifícios subiam até à grande tribuna vermelha onde Fiora e os Albizzi estavam sentados, em lugares singularmente próximos das altas poltronas onde se iam instalar o Magnífico e o seu hóspede privilegiado.

Mais uma vez, o tio Lodovico praguejou. O incenso fazia-o tossir não era o único e pensar, com amargura, na frescura do vale do Mugello. Chiara acabou por repreendê-lo:

Pára de resmungar, tio Lodovico! Tens a sorte de escoltar a mulher mais bela da cidade e passas o tempo a pensar nas tuas borboletas! Está toda a gente a olhar para nós.

Era verdade. Todos os olhares estavam pousados em Fiora, verdadeiramente imperial no seu vestido púrpura. À passagem, suscitara aplausos e cumprimentos entusiastas: ”Longa vida à mais bela!” ”Tínhamos a estrela de Génova, mas agora a de Florença também brilha!” ”Feliz aquele que te possui!” E até, gritado em voz alta por um descuidado ou por um qualquer ignorante das catástrofes que o nascimento irregular fizera cair sobre Fiora: ”Bendita seja, entre todas, a mãe que te deu à luz e te fez tão bela!”...