Fiora abraçou um a um, com os olhos enevoados e a voz rouca, aqueles que deixava para trás. A Esteban, disse:
Confio-vo-los, Esteban, porque sois o mais forte. Velai por eles, sem vos esquecerdes de vós próprio. Não vos esqueçais que sois meu amigo.
A Carlo:
Não tivemos muito tempo para nos conhecermos, meu irmão, mas o pouco que tivemos foi suficiente para que eu vos fique, para sempre, profundamente dedicada. Espero, de todo o meu coração, que voltemos a encontrar-nos.
Por fim, a Demétrios:
Tu foste e continuas a ser como um pai para mim e custa-me muito deixar-te. Suplico-te, diz-me que isto não é um adeus e que em breve nos voltaremos a ver!
Tomando-a nos braços, ele apertou-a contra si sem conseguir reter as lágrimas:
Os meus olhos obscurecem-se, pequena Fiora, e o livro do Destino abre-se cada vez mais raramente diante de mim, mas eu sei que não estaremos verdadeiramente separados. E agora vai, depressa! Um filósofo grego deve permanecer impassível em todas as circunstâncias e, neste momento, não me sinto nada filósofo...
Girando nos calcanhares, o médico correu a fechar-se na velha torre que lhe servia de observatório. Fiora foi ter, então, com Mortimer. De pé junto do seu cavalo, ele segurava-lhe o estribo e ela subiu para a sela enquanto o escocês prestava o mesmo serviço a Khatoun de uma maneira um pouco diferente: contentou-se em pegar nela e pousá-la no dorso do animal sem mais esforço do que se estivesse a pegar num simples saco e acompanhando o seu gesto com um sorriso beato que fez corar a jovem tártara e divertiu Fiora. O temível sargento la Bourrasque interessava-se, como era evidente, por aquela pequena criatura frágil e doce que não tinha o ar de pertencer ao mesmo planeta que ele. Mortimer estendeu delicadamente o seu manto sobre o cavalo, sorriu de novo e depois foi ter com a sua própria montada sem se aperceber de que Fiora escondia um sorriso sob o véu que lhe cobria a cabeça. Que a viagem começasse sob uns auspícios tão amáveis parecia-lhe um bom presságio.
Abandonando Fiesole, o pequeno grupo desceu tranquilamente a colina até ao vale do Mugnone, pelo qual seguiriam até à estrada de Pisa e Livorno. O tempo estava bom e uma brisa vinda do mar deixava esperar que o dia não seria muito quente. Fiora, junto de Mortimer, olhava para diante e fazia um esforço para não se virar mau grado a vontade que tinha, para que o arrependimento não invadisse a sua recente serenidade.
Subitamente, ao atingirem a aldeola de Barco, a jovem estremeceu. Todos ao mesmo tempo, como se obedecessem a uma ordem precisa, os sinos de Florença, de uma Florença excomungada, de uma Florença atingida pela interdição, começaram a tocar a um ritmo alegre no ar azul da manhã. Khatoun aproximou-se de Fiora, que parara para melhor escutar:
É ele que te está a dizer adeus murmurou ela.
Talvez... Mas há outra coisa. Os sinos não tocam um adeus, tocam um hino de esperança. Florença está a dizer-nos que a aventura não lhe mete medo, que continua forte e livre e que nada nem ninguém a fará mudar... E agora, vamos! Temos de continuar!
Toda a emoção daquele instante evitou que ela reparasse num homem que a espiava, escondido por trás de um tronco de oliveira. Esse homem era Luca Tornabuoni...
Dois dias mais tarde, no momento em que, no porto piscatório de Livorno, a caravela que ia conduzir o pequeno grupo até Marselha içava nos seus três mastros as grandes velas, Philippe de Commynes, em Roma, fazia soar, sob os tacões das suas botas, as lajes de mármore da sala do Papagaio. Ao fundo, escondido no seu trono como um animal emboscado, Sisto IV via-o aproximar-se por entre as pálpebras semicerradas. Ao lado do embaixador francês, o traje púrpuro do cardeal-carmelengo Guillaume d’Estouteville deslizava sem ruído... Diante deles trotava o mestre-de-cerimónias Patrizi, mais do que nunca parecido com um ratito aterrorizado.
Após o ritual solene das saudações protocolares, o Papa, sem romper o silêncio de mau agoiro em que se mantivera após a entrada do enviado de Luís XI, olhou por um momento para o rosto cheio e tranquilo do flamengo cujos olhos azuis não se privaram de o examinar com uma certa curiosidade. Philippe pensou que aquele homem gordo correspondia à imagem que se fazia dele: parecia tão tinhoso quanto era na realidade. Por fim, do fundo do seu triplo queixo, o Papa grunhiu:
Que nos quer o Rei de França?
Commynes tirou da sua manga uma carta selada com o Grande Sinete, avançou dois passos e, com uma genuflexão, ofereceu-a ao Sumo Pontífice. Mas as suas mãos não deviam ser suficientemente nobres para transmitirem directamente a mensagem, porque foi d’Estouteville quem pegou nela e a estendeu ao Papa:
Abri, Nosso irmão e lede! disse-lhe Sisto IV. Quando descobriu o que tinha entre as mãos, o cardeal ficou tão vermelho como o seu traje. O latim do Rei Luís era, com efeito, suficientemente veemente para justificar todos os receios e enquanto desenrolava a prosa real, Estouteville perguntava a si próprio se o embaixador não deixaria a cabeça em Roma:
”Faça o Céu com que Vossa Santidade tome consciência do que faz, escrevia o rei e que, se não quer defrontar os Turcos, que renuncie, pelo menos, a prejudicar quem quer que seja que não concorde com Seu ministério. Porque eu sei que Vossa Santidade não ignora que os escândalos previstos no Apocalipse caem hoje sobre a Igreja e que os autores desses escândalos não sobreviverão, conhecendo o mais terrível fim, tanto neste mundo como no outro. Preze ao Céu que Vossa Santidade esteja inocente dessas abominações...
A voz do prelado estrangulou-se um pouco ao pronunciar as últimas palavras, mas estas não foram menos inteligíveis. Furioso, Sisto acabava de saltar do seu trono e lançava uma espécie de urro vingador que terminou numa série de imprecações:
Filho da iniquidade! Esse Rei vai saber quanto vale a minha cólera! Ousar insultar-Nos assim? Vamos excomungá-lo, vamos interditar-lhe o reino...
Texto integral da carta recebida pelo Papa das mãos de Philippe de Commynes.
Então, Commynes interveio:
O meu Rei não fez nada que mereça isso, Mui Santo Padre! É dever dos príncipes cristãos chamar a atenção do trono de São Pedro para as suas responsabilidades. Quando as velas turcas se aproximam lentamente das costas adriáticas, Vossa Santidade, em vez de tentar juntar a Itália sob a Sua mão augusta para opor ao Infiel uma força forte e unida, só sonha com a destruição de Florença...
Porque Florença merece ser destruída. Ousar enforcar o arcebispo de Pisa, ousar reter como refém o nosso cardeal-legado de Perúsia...
Monsenhor de Médicis não reteve o cardeal Riario como refém: pelo contrário, ofereceu-lhe o asilo do seu palácio para lhe evitar o destino do arcebispo Salviati. Florença é uma cidade piedosa e fiel a Vossa Santidade, mas não pode aceitar que em plena missa de Páscoa, no instante sagrado da Elevação, lhe assassinem os príncipes. O Rei de França não apreciou nada o... direi o incidente de Santa Maria del Fiore. E não é o único na Europa.
Nós não temos questão nenhuma com ele!
A sério? Que Vossa Santidade reflicta! O Rei não alimenta qualquer intenção hostil para com o papado. Mais, encarregou-me de oferecer a sua ajuda para combater o Turco, uma ajuda a não desprezar. Mas se Vossa Santidade se obstina em querer destruir Florença... ou a oferecê-la pela violência ao Seu sobrinho, o conde Girolamo Riario, essa ajuda irá para Florença. Que Vossa Santidade queira, por outro lado, recordar-se dos direitos familiares que a França conserva sobre o reino de Nápoles, usurpado por Afonso de Aragão. Se o Rei decidisse lembrar-se desse pequeno Estado e desejasse reconquistá-lo, Roma poderia ver-se numa posição enganadora. Por fim, suplico a Vossa Santidade que tome em consideração as suas... finanças.