Messire de Commynes disse-me que não é válido; mas nunca o foi, Sire.
Como assim?
Acabais de o dizer: eu fui forçada, sob ameaça. Além disso, nunca foi consumado.
Não acrediteis nisso! Muitos casamentos persistem nas mesmas condições. O que o anula... e Commynes foi encarregue, por mim, de informar o Papa, é que vós não sois viúva. Pelo menos, como acreditáveis que éreis.
Fiora sentiu-se empalidecer, ao mesmo tempo que as suas mãos ficavam frias. A jovem olhou para o seu vizinho com espanto, mas ele ofereceu-lhe apenas o seu perfil hermético.
Se me é permitido perguntar... que quer dizer o Rei?
Que, contra a vontade do vosso marido, as minhas ordens foram executadas. O sire de Craon, não se teria permitido, aliás, transgredi-las. Era suposto fazer sentir, àquele borgonhês teimoso, as angústias da morte, antes de suspender tudo no momento em que a sua cabeça repousasse no cepo.
Oh, Sire! Que crueldade!
Ah, achais? Por Deus, minha querida, esqueceis-vos que, a vosso pedido, já o agraciei uma vez? Aquele homem parece incapaz de estar quieto.
Podemos reprovar-lhe o facto de querer manter-se fiel ao seu juramento de cavaleiro?
A morte do Temerário tornou esse voto caduco e eu esperava que ele viesse a considerar com mais atenção o voto de casamento que fez perante vós.
A culpa não é só dele, Sire. Talvez, se eu tivesse sido mais paciente... menos arrebatada...
Assim lançada, Fiora teve de dizer ao seu companheiro o que acontecera em Nancy. A jovem esperava uma severa descompostura, mas Luís contentou-se em desatar a rir e ela sentiu-se vexada:
Oh, Sire! Tem assim tanta piada?
Por minha fé, sim. A vossa concepção de casamento era capaz de desarmar uma viúva, de tal modo é original. No entanto, tendes de saber que um homem digno desse nome não se deixa, assim, levar pela trela. Dito isto, não precisais de vos arrepender! Mesmo que estivésseis ligada à santa obediência para com o vosso marido, não teríeis mudado nada. Messire Philippe teria corrido da mesma maneira, e com a mesma rapidez, para cumprir o seu dever e como os esbirros do Papa vos teriam descoberto tanto em Selongey como aqui, não vejo quem teria podido ir em vosso socorro. Portanto, não precisais de vos lamentar! Aliás... nunca se deve lamentar nada, porque é a melhor maneira de enfraquecer a alma e a vontade mais bem temperadas. Que pensais fazer agora?
Mas... tentar reunir-me ao meu marido, se o Rei me quiser dizer onde ele está!
Luís XI levantou-se, dobrou duas ou três vezes os joelhos, que estalaram, para os tornar mais flexíveis e pôs-se a caminhar de um lado para o outro com as mãos fechadas atrás das costas.
Fá-lo-ia com alegria... se soubesse onde ele está!
Se... perdão, Sire, mas messire de Commynes disse-me que, depois do cadafalso, Philippe foi levado, naturalmente, para a prisão de Dijon e que, depois, foi transferido... para outro lado qualquer.
Para Lyon. Mais exactamente para o castelo de Pierre-Scize, uma boa fortaleza, bem defendida e provida das melhores masmorras. Simplesmente, ele não ficou lá.
Mas... porquê?
Pela melhor das razões: evadiu-se.
Evadiu-se? E não o encontraram?
Não!
Mas, enfim, Sire, vós tendes a melhor polícia da Europa, o melhor serviço de mensageiros, o exército mais poderoso...
Possuo tudo isso, é verdade, mas os governadores das prisões também têm filhas suficientemente estúpidas para ajudar a fugir um prisioneiro sedutor. O vosso marido, minha querida, fugiu com a ajuda de uma lima e de uma corda que lhe foram levadas dentro de um tabuleiro com queijo e fruta. Agora, já sabeis tudo!
Fiora ficou muda por alguns instantes. Na sua alma defrontavam-se os sentimentos mais contraditórios, Evidentemente, sentira uma grande alegria ao saber que Philippe estava livre, mas era demasiado mulher para que o episódio da filha do governador lhe causasse prazer, mesmo que a sua própria consciência, a despeito da confissão de Fiesole, não fosse totalmente transparente.
Não o procuraram? perguntou ela, por fim.
É evidente que sim. Como o castelo está construído sobre um rochedo que domina o Ródano, pensou-se, primeiro, que ele se tivesse afogado, mas o barco de um pescador tinha sido roubado. Em seguida, mandei vigiar os arredores de Selongey, pensando que talvez ele tivesse a ideia de regressar a casa. Sem resultado, assim como em Bruges, em casa da duquesa Maria! Eu, ali, tenho, naturalmente, umas certas... cumplicidades disse o Rei virtuosamente mas parece que ninguém o viu.
Meu Deus!... e se lhe aconteceu alguma desgraça? Sozinho, sem armas, sem dinheiro, pode ter sido atacado, talvez morto?
Ah! Não recomeceis a chorar! Pensando nessa possibilidade, fiz proclamar em todos os bairros do reino a sua descrição física, prometendo uma boa recompensa a quem o entregar vivo e uma outra... bastante mais pequena, a quem o entregar morto! Não apareceu nada. Até fiz melhor: o seu escudeiro, Mathieu de... Prame, creio eu?
Sim. A última vez que o vi encontrava-se perto daqui dentro de uma jaula e conduziam-no ao castelo de Loches disse Fiora em tom de reprovação.
É exacto. Bem, ele foi solto e depois seguido discretamente. Fugiu para Bruges... e nunca mais tive notícias dele... nem, aliás, dos dois homens que encarreguei de o vigiar, mas é verdade que em casa de Madame Maria e do marido, os Franceses não têm fama de santos. Em todo o caso, uma coisa é certa: ninguém apareceu para reclamar a recompensa, mas o vosso marido, minha querida filha, custa uma fortuna à minha tesouraria...
Sinto-me desolada, Sire, mas, se vo-lo tivessem entregado, qual seria o seu destino? Ele teria... ele teria sido...
Executado? Tomais-me por um papalvo? Eu não mudo de opinião com facilidade! Tê-lo-ia fechado mais uma vez numa jaula e aqui mesmo, na prisão do meu castelo, enquanto esperava que vos encontrassem. E agora, vinde! Preciso de caminhar um pouco!
Fiora não se mexeu. De olhar fixo, a jovem contemplava a ponta dos seus sapatos que soerguiam as ramagens do seu vestido e apertava, com força, uma mão contra a outra, segundo o seu hábito quando estava presa de uma emoção forte.
Então? impacientou-se o Rei. Estais à espera de quê? Ela ergueu para ele uns grandes olhos desolados:
E... se ele se tivesse refugiado aqui?
Quem? Selongey? Também pensei nisso. Mas, se fosse o caso, qualquer um da vossa casa o teria visto e já o saberíeis! Vamos, coragem! Estou certo que ele está vivo.
Nesse caso, está longe... talvez demasiado longe! Eu sei que lhe passou pela cabeça pôr a sua espada ao serviço de Veneza para combater os Turcos. Nesse caso, nunca mais regressará e eu nunca mais saberei nada dele.
Veneza, dizeis vós? Nós podemos, pelo menos, saber se ele foi para lá! Vou escrever ao doge a seguir ao jantar. Veneza é, talvez o saibais, a cidade mais bem guardada do mundo e um estrangeiro não pode entrar nela sem chamar a atenção dos esbirros do Conselho dos Dez. Talvez venhamos a saber qualquer coisa, mas abandonai esse ar desolado e regressemos. Não tarda, estão a tocar para a água.
Dessa vez, Fiora deixou-se levar.
Sem mais palavras do que à vinda, o Rei e a sua jovem companheira regressaram ao pátio de honra, onde se amontoavam criados, cavalos e equipagens. Com surpresa e alguma inquietação, Fiora reparou numa grande liteira púrpura cujas portinholas mostravam um grande brasão encimado por um chapéu cardinalício que lhe pareceu vagamente familiar. A jovem ousou pousar a mão no braço do soberano para o deter.
Sire! Que o Rei me perdoe, mas se ele recebe esta noite um príncipe da Igreja, talvez seja melhor eu regressar a minha casa.
Sem jantar? Quando vos convidei? E por que razão, se fazeis favor?
Francamente, Sire, eu estou um pouco... farta de cardeais e receio não me sentir à-vontade. Além disso, o meu traje...