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Que estais para aí a dizer? Vós estais soberba e será preciso que estejais à-vontade, porque vos convidei especialmente esta noite para que o cardeal della Rovere veja a estima em que vos tenho.

Sob o olhar brilhante de satisfação de Luís XI, Fiora sentiu-se verde:

O... cardeal... della Rovere? murmurou ela, espantada. Ele não é...

Da família do Papa? É claro que sim, e vós deveis, pelo menos, ter ouvido falar dele em Roma. Ele é um dos sobrinhos, de longe o mais inteligente e, por isso mesmo, o mais perigoso. Mas talvez vos agrade! E agora, deixo-vos: tenho de me ir vestir! E estou a ver Mme. de Linières, que vos vem buscar para vos conduzir até junto da princesa Joana, a minha filha. Vós já a conheceis e ela está muito contente por voltar a ver-vos.

Saudado quase até ao chão por aqueles que se amontoavam no pátio de honra, o Rei conduziu Fiora até à dama imponente que esperava perto da base da escadaria, já dobrada em duas numa reverência profunda. Como, além disso, tivesse baixado a cabeça por respeito para com a aproximação do Rei, este quase se feriu na flecha do grande chapéu pontiagudo que ela trazia. O Rei afastou o obstáculo, o que quase provocou a queda do edifício.

Demasiado alto, Mme. de Linières, demasiado alto! exclamou ele, meio a brincar, meio zangado. Que raiva deu às mulheres para quererem parecer-se com campanários de igreja? O que me espanta é que o meu reino não tenha mais zarolhos.

Peço perdão ao Rei replicou a dama com serenidade e até com um sorriso, mostrando que não estava impressionada. Sempre pensei que a honra de acompanhar uma filha de França, que ainda por cima é duquesa de Orleães, obrigasse a um certo decoro no vestuário. É uma forma de respeito.

Nesse caso, usai o respeito menos pontiagudo!

E, assobiando alegremente uma ária de caça, Luís XI desapareceu na escadaria em caracol, deixando as duas mulheres frente-a-frente:

Vinde, Madame disse a dama-de-honor, estendendo a mão a Fiora, que não se pôde impedir de rir. A senhora duquesa tem pressa de vos rever e podereis refrescar-vos antes do jantar.

Habituada a ver Luís XI viver na maior das simplicidades, Fiora ficou surpreendida com o aparato para aquele jantar e com o esplendor da sala onde ele se desenrolou. Aquela grande divisão fazia parte dos aposentos reais do primeiro andar, abertos apenas para estrangeiros ilustres e em determinadas circunstâncias. Dava para o terraço sustentado pela galeria coberta do rés-do-chão; o seu fausto, verdadeiramente real, diferia da sumptuosidade cintilante que rodeava os duques de Borgonha. O mobiliário revestido a veludo e as grandes tapeçarias davam ao conjunto uma nota severa, acentuada pelos vitrais de cores das janelas altas, que deixavam entrar uma espécie de penumbra. O ouro dos tectos em madeira e das guarnições dava um ar abafado ao grande salão, salvo quando os grandes candelabros, carregados de velas, os iluminavam, como naquela noite.

Estavam postas três mesas: a do Rei, que ocupava a sala de jantar propriamente dita, ou refeitório; a dos cavaleiros e grandes oficiais da casa real, à qual se sentavam os convidados de importância e, por fim, a dos esmoleres e escudeiros. Uma quarta acolhia, fora da zona dos aposentos, os oficiais de baixa patente e os peregrinos, ou os viajantes perdidos que, por acaso, buscavam hospitalidade. Na mesa do Rei, a mais brilhante e mais bem servida, as mulheres eram raras, salvo quando a Rainha, Carlota de Sabóia, visitava o seu marido.

Naquela noite, eram duas e foi com algum orgulho que Fiora tomou lugar à esquerda do soberano. A princesa Joana, encantadora apesar de um físico desgracioso sob uma coifa de um azul doce salpicado de ouro combinando com um vestido de cendal, estava sentada junto do convidado de honra, este sentado à direita do Rei.

Aos trinta e sete anos, Giuliano della Rovere era, sem dúvida, o mais bem sucedido dos sobrinhos de Sisto IV. Grande e bem constituído, parecia-se mais com um condottiere do que um homem da Igreja com as suas mandíbulas carnívoras e os seus olhos de caçador de órbitas cavadas, que semicerrava frequentemente para apurar a visão. A cor púrpura ia bem com a sua tez morena e com os cabelos negros cortados segundo o desenho do solidéu escarlate que os tapava. Perfeitamente barbeado, o rosto ossudo era duro, mas sabia sorrir com alguma ironia que não era sem encanto e o perfil imperial parecia feito para aparecer em medalhas.

Núncio do Papa em Avinhão, era titular de um grande número de bispados dos quais o de Lausannne, o de Messine e o de Carpentras e a 3 de Julho daquele ano de 1478 recebera, também, o de Mende, para o qual viera em busca de aprovação por parte de Luís XI. Aprovação graciosamente concedida: não era a primeira vez que ambos se encontravam e o Rei tinha um fraco por aquele homem elegante de modos rudes que diziam violento, mas que possuía uma inteligência aguda e que sabia manejar a astúcia quase tão bem como ele mesmo. Ali cessava a semelhança porque, amigo das letras e das artes, o cardeal della Rovere levava uma existência faustosa graças à considerável fortuna que lhe constituíra o seu tio. Uma existência muito diferente da de fidalgo rural habitual do Rei de França.

Quando, apresentada por este, Fiora dobrou o joelho para beijar o anel pastoral na ocorrência uma fabulosa safira em forma de estrela o núncio deixou cair sobre ela um olhar interessado:

Tornar-se-ia, em 1503, no temível Papa Júlio II.

Estivestes recentemente em Roma, creio, Madame?

Com efeito, monsenhor.

É uma pena não terdes podido apreciar as suas belezas...

Essa possibilidade não me foi oferecida, já que me limitei a passar de uma prisão para outra.

Há prisões e prisões. De resto, quando escolhestes Florença, o Santo Padre lamentou-o vivamente, porque estava e continua a estar cheio de benevolência para convosco. A sua amizade ter-vos-ia assegurado alguns dias agradáveis.

Dignai-vos agradecer-lhe os bons sentimentos, mas o seu espírito é demasiado brilhante para não compreender os meus. E esses são os de Florença, monsenhor, e eu só posso deplorar os dramas de que a minha pátria tem sido o teatro.

Dramas que, infelizmente, se agravam. Por que não falarmos deles um destes dias?

Falar de política convosco? Mas, monsenhor, eu não entendo nada de política.

Não vos rebaixeis, Madame. O Santo Padre tem a vossa inteligência em grande consideração e a vossa amizade com o Rei de França só reforça essa opinião. Nós podíamos, os dois, fazer um bom trabalho...

Tendo dito aquilo, della Rovere afastou-se após ter saudado a jovem com uma inclinação de cabeça. As trombetas de prata soaram para o jantar e cada um tomou o seu lugar. O Rei, que depois de ter apresentado Fiora, se afastara para conversar com o arcebispo de Tours, regressou para conduzir ele próprio o cardeal-núncio à sua poltrona.

O jantar, se bem que longo, foi excelente e teria sido enfadonho não fora a disputa divertida que opôs, como era hábito, o médico do Rei, Coictier, ao chefe cozinheiro Jean Pastourel. De pé por trás da cadeira real, trocavam olhares furiosos e propósitos agridoces a meia-voz acerca do conteúdo do prato do senhor de ambos. Quando o médico afirmou que as morcelas de capão só serviam para envenenar o Rei, o cozinheiro ripostou que as drogas do seu adversário é que eram nefastas para a sua saúde, já que a arte da cozinha consistia em preparar os melhores produtos de maneira a que não causassem qualquer incomodidade. De tempos a tempos, o tom da disputa subia e Luís XI tinha de intervir. O Rei acabou por enviar Coictier para a sua mesa, acrescentando que uma refeição tomada na companhia de um príncipe da Igreja não podia fazer mal a ninguém. Nem sequer a ele.

Coictier afastou-se a resmungar aliás, era um homem muito pouco simpático e, a partir desse instante, Fiora aborreceu-se. O Rei dedicou-se ao seu hóspede e o outro vizinho da jovem, um homem grande, vermelho, que era o capelão do prelado romano, após ter tentado acariciar-lhe o joelho por baixo da mesa, resignou-se quando ela o beliscou energicamente e passou a interessar-se pelas iguarias que lhe serviam. Ao cabo de um quarto-de-hora estava escarlate e, no fim da refeição, completamente ébrio.