Essa notícia aflige-me, mas como poderia eu ajudá-la?
Por que não lhe escreveis uma carta, na qual lhe exprimis a vossa amizade? Poderíeis acrescentar que estais disposta a defender, junto do Rei de França, a causa do Vaticano...
Fiora levantou-se bruscamente e enfrentou o seu visitante. Um princípio de cólera avermelhou-lhe o rosto:
Falemos claro, monsenhor! Vós quereis que eu tente libertar a França da aliança com Florença e que eu traia os meus queridos amigos, a recordação do meu pai, o meu...
O vosso amante? Não, não vos zangueis! Nós também temos espiões em Florença. E não vos pediria uma coisa tão terrível. O que vos peço é que penseis no seguinte: todos os homens são mortais e o Médicis não escapa à lei comum. Que ele desapareça e que Florença, não tendo mais ninguém para defender, abra as portas ao Papa. Donna Catarina, como soberana, levaria a peito, estou persuadido, a conservação dos vossos bens.
Deixemo-nos de conversas, monsenhor! Eu gosto de donna Catarina e faria tudo para que ela fosse feliz, mas não ajudarei o seu marido a subjugar a cidade que me é querida!
E se Riario não vivesse o suficiente para reinar sobre a Toscânia? Vamos, donna Fiora, eu não vos peço muito: uma carta amável, de certo modo uma carta pacificadora... e depois, talvez, uma tentativa para dispor melhor o Rei Luís connosco sem renunciar, pelo menos abertamente, à sua aliança com Lourenço. A sua atitude actual provoca grandes prejuízos à Santa Sé...
Pecuniários? Não duvido! disse Fiora, azeda. Para mim, não há nada melhor do que trabalhar pela paz, mas não foi Florença, repito, que declarou a guerra. Por outro lado, para que eu acredite na boa vontade do Papa, seria preciso que ele começasse por um gesto... de pai. Levantar a interdição, por exemplo?
Posso sugerir-lho. Escrevereis essa carta?
Seria uma carta enganadora. O Rei está longe e eu não sei quando regressa.
Mas regressa, um dia destes, e eu não tenho pressa. Contentar-me-ei com a carta e com a vossa promessa. Talvez, por outro lado, eu vos possa ajudar num assunto que vos preocupa muito... Mas o tempo passa e eu tenho de vos deixar... Tenho assuntos a tratar com o arcebispo.
O cardeal levantou-se com uma pressa súbita que Fiora achou suspeita e dirigiu-se para a porta.
Evidentemente, voltaremos a encontrar-nos acrescentou ele amavelmente passei junto de vós momentos encantadores. Mas, agora, preciso de reflectir. Regressarei dentro em breve.
Concedei-me ainda um minuto, monsenhor. Que assunto é esse que me interessa muito?
Não passa de um rumor que me chegou aos ouvidos. Infelizmente, não tenho tempo para vo-lo referir. Fica para a próxima visita: digamos... dentro de dois ou três dias?
Tencionais ficar ainda muito tempo em Tours?
Infelizmente, não... se bem que a cidade me agrade e que as pessoas insistam para que eu fique. Mas tenho de partir para Avinhão, onde se encontra a sede da minha nunciatura...
Compreendendo que o cardeal não tencionava dizer mais nada, Fiora conduziu-o até à sua liteira, de onde ele a abençoou e perante a qual a jovem teve de se inclinar.
Perplexa, a jovem viu desaparecer, sob a verdura densa do caminho sombrio que ia dar à saída do seu domínio, a imponente equipagem. Desaparecido o cortejo, Fiora desceu ao jardim, por onde caminhou ao longo das alamedas bem limpas antes de se sentar por baixo de uma latada. Léonarde sentia-o, devia estar a espreitá-la da casa transbordando de perguntas e, justamente, Fiora desejava ficar só por uns instantes para tentar esclarecer aquela visita curiosa. A iniciativa de della Rovere parecia-lhe bastante ridícula. Seria preciso, de facto, conhecer bastante mal o Rei Luís, aquele homem secreto de quem se dizia que o seu cavalo transportava todo o seu conselho, para imaginar, por um só instante, que se pudesse deixar influenciar pelos pedidos de uma mulher, fosse ela objecto da sua amizade. Por outro lado, era insensato pedir-lhe, a ela, de quem, aparentemente, o cardeal não sabia grande coisa, que tentasse desligar a França da sua antiga aliança e das suas amizades.
Evidentemente, havia o caso de Catarina. Fiora sentia-se mal por lhe ter causado aborrecimentos, já que não se sabia até onde poderia ir um homem como Riario. Um acidente é sempre possível e, então, só restaria ao Papa chorar por aquela sobrinha, à qual estava tão afeiçoado.
A memória de Fiora fê-la rever o rosto do cardeal no momento em que falava de Catarina: um rosto tenso, uma máscara quase dolorosa. Talvez a amasse e, nesse caso, talvez estivesse pronto a todas as loucuras para lhe acudir. Não sugerira que Riario talvez não vivesse muito mais tempo? Se della Rovere amava a sua prima por aliança com um amor sincero e ansioso, tornava-se muito mais simpático aos olhos de Fiora e a jovem deu por si a pensar que, no fim de contas, a carta que lhe pediam que escrevesse tinha pouca importância: bastaria escrevê-la com a habilidade suficiente para não a comprometer. E depois, havia aquela frase misteriosa que o visitante recusara esclarecer, dizendo que falariam ”na próxima vez”...
Nesse instante, Fiora lamentou amargamente a ausência do Rei. Se ele estivesse em Plessis, teria ido ter com ele para lhe contar os acontecimentos e pedir-lhe conselho. Aquele senhor diplomata, aquele príncipe de todas as astúcias, que conhecia melhor do que ninguém a arte de redigir cartas e tratados, teria conseguido obter do prelado romano a revelação daquilo que escondera a Fiora. Mas o Rei estava longe e era preciso desenvencilhar-se sozinha.
Naquela noite, quando toda a gente já estava deitada, Fiora, já tarde na noite, sentada na sua cama, exercitava-se, tentando escrever uma carta capaz de satisfazer todo o mundo. A jovem depressa descobriu que a coisa não era fácil. O princípio não custava nada, claro: tratava-se, simplesmente, de endereçar a Catarina os seus agradecimentos, em termos comoventes, por ter permitido que uma mãe encontrasse o seu filho. Mas tudo se complicou a partir do momento em que teve de falar do Rei e dos pedidos a fazer-lhe. Era tão difícil que Fiora acabou por abandonar o problema. A jovem afastou o papel e a pena, apagou a vela e deixou que o sono se apoderasse de si. Já reparara, muitas vezes, que a resposta a uma pergunta espinhosa aparecia quando acordava.
O que aconteceu tardiamente, porque adormecera bem depois da meia-noite. Ao abrir os olhos, a jovem viu Léonarde postada aos pés da sua cama a ler, com interesse, as suas diversas tentativas.
Ides, mesmo, escrever esta carta? perguntou ela. No entanto, devíeis recordar-vos do que dizia aquele diabo do Demétrios: ”É preciso prestar muita atenção ao que se escreve e a sabedoria está em escrever o menos possível! Pensais que não penso nisso? Mas eu gostava tanto de ajudar Catarina!
E saber o que vos reserva aquele belo cardeal! Reconheço que ele é hábil e que a sua história foi conduzida com mão de mestre! Ele soube perfeitamente jogar com os vossos sentimentos e com o reconhecimento que deveis a essa jovem dama. E, para terminar, soube espicaçar a curiosidade tão natural nas filhas de Eva.
Mas... como sabeis vós isso? Não me lembro de vo-lo ter contado?
Léonarde teve um grande sorriso que lhe descobriu os dentes um pouco espaçados, mas ainda bastante brancos:
Se bem que já não pareça, eu também sou filha de Eva, minha querida Fiora! Escutei à porta, simplesmente! Vou ver se o vosso banho já está pronto.
A saída de Léonarde, sob as abas brancas da sua coifa que batiam ao vento ao ritmo do seu andamento, foi uma obra de arte de dignidade que Fiora admirou sem reservas. Só um momento mais tarde, quando se levantava do leito, é que se apercebeu que a velha solteirona lhe tinha levado todos os rascunhos.
No entanto, quando o cardeal della Rovere fez, dois dias mais tarde, a sua aparição na Casa das Pervincas, a carta estava pronta e Fiora estendeu-lha assim que ele se sentou perto da chaminé.