Creio disse Fiora que é melhor escolhermos Cormery. A minha querida Léonarde já não pode mais e eu confesso que apreciaria um pouco de repouso.
Avançando até ao flanco do cavalo do grande preboste, ela estendeu-lhe uma mão que ainda tremia um pouco:
Muito obrigada, messire! Ignoro, ainda, por que milagre nos pudestes salvar, mas podeis estar certo que nunca mais o esquecerei e que direi ao Rei...
Vós não direis nada ao Rei, Madame!
Num movimento de uma rapidez e ligeireza inesperadas num homem daquela idade, Tristan L’Hermite pusera pé em terra para poder saudar a jovem:
Como? disse Fiora.
Se adquiri alguns direitos com o vosso reconhecimento, Madame, peço-vos a graça, mais por vós do que por nós, de não dizerdes nada ao nosso sire sobre o que aconteceu aqui esta noite.
Mas... porquê?
Mortimer interveio:
Ele tem razão, as verdades nem sempre se podem dizer. Se aquele em quem ambos pensamos está na origem desta maquinação, não seremos ouvidos, o Rei recusará acreditar em nós...
Sim cortou Tristan I’Hermite precisamos de provas...
Provas? conseguiu dizer Fiora, que quase sufocou. Mas, faltam algumas nesta clareira? Tendes esses dois homens! E o que vos poderá dizer o cardeal. E tendes a minha palavra, enfim, e a da dama Léonarde!
Fizestes bem em mencionar as vossas pessoas em último lugar disse Mortimer um tanto ambiguamente. Sois precisamente vós as que contarão menos. As mulheres, para o Rei Luís, são palradoras incuráveis, dotadas de uma imaginação diabólica... e a personagem pertence ao seu séquito.
Vós achais que... começou Fiora, que acabava de ter uma ideia. Mas o grande preboste impôs-lhe silêncio:
Nada de nomes, Madame! Deixai-me tratar deste assunto à minha maneira e recebei as minhas saudações. Quereis um dos meus homens para vos acompanhar?
É inútil! disse Mortimer. Eu encarrego-me... e agradeço-vos por terdes acreditado em mim, messire grande preboste! E também por me terdes ajudado.
A sombra de um sorriso distendeu fugitivamente o rosto severo de Tristan l’Hermite.
Não fiz mais do que cumprir os deveres do meu cargo, jovem, mas confesso que sou sensível à amizade. Em tempos... há muito tempo, dediquei-me, tal como vós, ao serviço de uma dama... muito bela!
Vós, messire? Uma dama? murmurou Mortimer, sinceramente espantado.
Surpreende-vos, não é? O grande justiceiro, o senhor dos carcereiros, da polícia, dos carrascos? Ela chamava-se Catarina de... mas ficai descansado! Não era eu que a amava. Mas, agora, parti! Ver-vos-ei de novo em Plessis!
Douglas Mortimer ajudou Léonarde e Fiora a subirem de novo para a viatura e depois, após ter prendido o seu cavalo na traseira do veículo, saltou para a boleia. Enquanto o escocês virava pesadamente a pesada carroça para retomar o caminho já percorrido, Fiora lançou um último olhar à clareira onde a fossa ainda aberta guardava os vestígios do horror que ela e Léonarde acabavam de viver. Dois soldados estavam a tapá-la No meio do duplo círculo de archotes e armaduras, Tristan l’Hermite, de novo na sua sela, observava-os, tão imóvel como uma estátua equestre. Junto dos cascos do seu cavalo, Pompeo e o outro bandido tremiam e choravam, mas ela não sentiu qualquer piedade. O seu espírito e o seu coração estavam gelados. A jovem nem sequer sentia o medo retrospectivo. Tudo o que povoava o seu espírito era uma imensa decepção. O sonho acariciado há três dias, a esperança de reencontrar Philippe, mesmo doente, mesmo inconsciente e de o levar para junto do seu filho, acabava de se transformar numa sinistra decepção. Tinham-na enganado e agora regressava a casa com a alma cheia de amargura e as mãos vazias...
Serei assim tão pobre de espírito, ao ponto de me poderem enganar com tanta facilidade? murmurou ela sem se dar conta de que acabava de pensar em voz alta.
É evidente que não respondeu Léonarde cuja mão procurou a sua mas tudo que diga respeito ao vosso coração atinge o seu objectivo. E vós quereis tanto encontrar Messire Philippe!
Reprovais-mo?
Eu? Deus é testemunha! Sabeis muito bem que o meu maior desejo é ver-vos, enfim, feliz. Mas não consigo compreender como aquele homem pôde saber que o vosso marido se evadiu de Lyon.
Aquele homem? Quereis dizer, o cardeal?
Sim, infelizmente! suspirou a velha solteirona. Não consigo deslindar o papel dele nesta armadilha infame.
Segundo os seus cúmplices, ele não sabia de nada, ou quase nada. O que é difícil de acreditar...
De qualquer maneira, não possuímos nenhuma resposta válida para essa pergunta, nem para algumas outras, aliás. O jovem Mortimer poderá dar-nos algumas e pode ser que aquele Tristan L’Hermite consiga que monsenhor della Rovere confesse!
Achais que sim?
Parece possível, porque ele é um homem terrível. Além disso, em Loches, ele deve dispor dos meios suficientes para o fazer falar.
Perdestes a cabeça, Léonarde? murmurou Fiora, espantada. Não imaginais que ele seria capaz de ameaçar com a prisão um príncipe da Igreja, ou até...
Léonarde abriu-se num grande sorriso:
A tortura? Por que não? As relações entre o Rei e o Papa, já de si más, não perderiam grande coisa. E podeis crer acrescentou ela com um suspiro pleno de satisfação que ele é homem para isso.
E... isso dar-vos-ia prazer? ”
Não imaginais até que ponto.
O que não impediu a velha solteirona, uma vez instalada na cela que o irmão hospedeiro ofereceu aos viajantes na casa de hóspedes de Cormery, de se ajoelhar junto da sua estreita cama para uma longa e profunda oração. Na simplicidade do seu coração, Léonarde acreditava que as ovelhas ronhosas podiam infiltrar-se no santo rebanho da Igreja e que Deus não podia, com toda a justiça, ser responsável pelos crimes dos seus servidores.
Única consolação da triste aventura: o regresso à Casa das Pervincas foi saudado com um entusiasmo que reconfortou o coração de Fiora e depois com uma viva indignação quando se soube a verdade, o que alegrou o de Léonarde. No entanto, a verdade só apareceu com toda a evidência quando, dois dias depois do regresso, Douglas Mortimer se apresentou para jantar em la Rabaudière.
Enquanto limpava um após outro os pratos e as terrinas com um trabalho lento, implacável e metódico das mandíbulas, o escocês contou como se achara nomeado para a floresta de Loches para ali subtrair as suas amigas ao seu trágico destino:
Na noite daquele famoso jantar, vi mestre Olivier le Daim em conversação com o cardeal, conversação essa que até podia ser inocente, porque o nosso homem tinha todo o ar de uma profunda piedade. Parecia pedir ao prelado a sua protecção para adquirir indulgências. Inclinava-se, persignava-se, agitava-se, fazia toda a espécie de momices. Percebeis o que quero dizer?
Completamente! disse Fiora.
Simplesmente, eu, as conversas inocentes de mestre Olivier, não acredito nelas e depois de vos ter trazido a casa, pusme a espiá-lo. Essa missão não era muito difícil, porque ele nunca está livre dos seus deveres antes de o Rei se deitar. Até tive tempo de vestir roupas negras antes de me colocar à espera no lado de fora das muralhas. Então, vi-o sair por uma poterna montado numa mula e dirigir-se para Tours. Segui-o até uma taberna à borda-d’água. Era preciso saber que era ele, porque levava um grande manto, um capuz enfiado até às orelhas e uma máscara, mas, àquela peça, sou capaz de o farejar sob que disfarce for, nem que ele estivesse vestido de cónego, coisa que faz muitas vezes. Mas, desta vez, estava fora de questão brincar aos homens da Igreja, dado o objectivo do seu passeio... Bebia mais um pouco desse vinho de Beaune, dama Péronnelle! É espantoso como o falar faz sede.
Morta a dita sede, Mortimer recomeçou o seu relato: