Sempre seguindo-o, vi-o entrar numa taberna na margem do rio onde se encontra o mais belo sortido de malfeitores e ali chegar à fala com aquele Tordgoule, sobre o qual não vos direi mais nada... senão que, de facto, não parecia saber com quem estava a falar.
Como percebestes isso?
Por uma certa maneira de ser. O malandro mostrava uma desconfiança tal que Daim teve de tirar ouro da algibeira para o convencer. E é sempre perigoso fazer brilhar o metal amarelo num tal local. Os dois saíram juntos e perderam-se na noite de tal maneira que não fui capaz de os encontrar. Então, fui a casa do grande preboste para lhe dizer o que tinha visto...
Em plena noite?
Ele é um homem que não dorme muito! Disse-lhe que estava a pensar em falar ao Rei, mas ele dissuadiu-me. Primeiro, porque eu não testemunhara nenhuma ofensa grave. Depois, por causa da confiança cega que o nosso sire tem no seu barbeiro. Este, claro, ia deixar Plessis com ele e como era suposto deixar no castelo uma companhia da Guarda, pedi para tambem ficar com o pretexto de que não me sentia bem. O que fez rir o Rei...
Rir?
A bandeiras despregadas. Quase sufocava.
A que propósito, essa alegria toda?
Bem... ha... ele achou que o meu mal não era muito grave e que... vós éreis a origem e o... enfim... Quando ele parou de rir, disse-me: Por Deus, Mortimer, acabais de me fazer passar um bom bocado! Mas não repitais! Eu não vou estar ausente muito tempo e é por isso que quero que fiqueis, desta vez... Vós estais ao meu serviço, não ao das damas!
Vermelho como um lagostim bem cozido, o pobre homem não ousava olhar de frente para Fiora e teve, para recobrar a calma, de engolir de um trago duas taças de vinho que, coisa estranha, lhe devolveram a cor normal...
Seja como for, como Tristan L’Hermite se encarregou de vigiar Tordgoule, eu atrelei-me ao cardeal. Quando vi que vos enviava uma viatura, compreendi que se passava algo de bizarro. Passei a noite no vosso bosque e, depois da vossa partida, interroguei a menina Khatoun e a dama Péronnelle.
Fiora saltou, literalmente e com tanta energia que quase ia virando a mesa:
Que bela maneira de fazer as coisas! Por que é que, em vez de vos esconderdes, não fostes ter comigo? Ter-vos-ia dito o que contava fazer!
Não duvido nem por um só instante, mas ter-me-íeis escutado se vos tivesse aconselhado a não partir?
É evidente que não! resmungou Léonarde, que ainda não dissera duas palavras desde o início da refeição. Nada a teria detido... Por que pensais vós acrescentou ela que me atirei, constipada como estou, para os maus caminhos deste belo reino de França?
Estou a ver concluiu Fiora, sentando-se de novo. E depois?
Foi simples. Juntei-me a vós à saída de Tours e segui-vos de longe. Nunca uma viagem me aborreceu tanto! Vá-se lá perceber como se pode andar com tanta lentidão! Aquilo fez-me lembrar...
O escocês interrompeu-se para lançar a Léonarde um olhar perplexo que a fez rir:
Acabai o vosso pensamento! Fez-vos lembrar aquela deliciosa viagem que fizemos juntos quando me conduzistes a Nancy para junto do duque de Borgonha!
Um pouco! Regressando àquele maldito dia, ia falhando quase tudo porque o grande preboste atrasou-se e eu tive de esperar por ele.
E vós contáveis seguir-nos durante muito tempo?
Tínhamos a certeza de que não seria necessário. Tordgoule não gosta de se afastar de Tours onde vive mais ou menos tranquilamente, ao passo que deixou, através do reino, algumas recordações embaraçosas. Precisava de agir com rapidez.
Não teria sido mais simples continuou Léonarde prender aquela gente antes de se atirarem a nós?
O grande preboste é um justiceiro rude, mas precisa, pelo menos, de um começo de prova. Ele queria apanhar os malandros com a boca na botija, se assim posso dizer. Acrescento que ele esperava que a tortura lhe permitisse apanhar Olivier le Daim, que detesta. L’Hermite sonha com a possibilidade de o acusar abertamente de uma perversidade diante do Rei, mas eu não sei se esse sonho alguma vez se realizará. No cavalete, Tordgoule não disse nome nenhum pela simples razão de que ignorava o do seu cliente. Foi enforcado sem nos dizer nada. Quanto ao cocheiro Pompeo, o cardeal mandou-o abater em frente de Messire Tristan.
Que cómodo! disse Fiora com uma risadinha. Foi a melhor maneira de o calar para sempre! Gostaria de saber qual terá sido a explicação que ele deu ao grande preboste...
Nenhuma! Um príncipe da Igreja não se rebaixa a dar explicações a um homem da polícia. Mas pode ser que diga alguma coisa dentro disto.
E, desapertando o gibão de veludo azul, Mortimer tirou uma carta com um grande selo escarlate, que estendeu a Fiora por debaixo da mesa.
É para mim? perguntou esta.
É claro. O cardeal enviou-a a messire Tristan, que ma enviou nessa mesma noite. Essa missiva deve estar cheia de belas frases chorosas e floridas... E estão escritas pela própria mão de Sua Eminência.
Sem responder, Fiora quebrou o selo e desdobrou a grande folha estaladiça onde se via uma letra alta, ao mesmo tempo elegante e vigorosa. O texto, para dizer a verdade, era curto. Exprimindo-se num toscano de grande pureza, Giuliano della Rovere afirmava a sua completa ignorância acerca da armadilha infame para a qual, sem querer, arrastara Fiora e a sua acompanhante. Por outro lado, não mentira quando contara a história do evadido do Ródano, Fiora podia certificá-lo através de uma carta enviada ao prior do convento, na qual ele mencionava o seu nome. Ele próprio ligara os factos pelo que ouvira em Plessis acerca daquele conde de Selongey de quem muito se falara, naturalmente, em Roma, no séquito do Papa. E terminava dizendo-se pronto a ajudar em tudo o que pudesse uma jovem dama cujo encanto e grande nobreza pudera apreciar.
Mesmo assim, não ousou dar-vos a bênção resmungou Léonarde, que se apoderara da epístola cardinalícia quando Fiora a deixara cair em cima da mesa, mas ninguém se fez eco dela.
Mortimer partia amêndoas enquanto olhava para Fiora, mas Fiora não olhava para nada... Com o olhar perdido na verdura do jardim que a janela aberta enquadrava como se fosse uma tapeçaria preciosa, a jovem esqueceu o seu hóspede, o local onde estava e o tempo. Um só pensamento naquela fina cabeça que a terra quase engolira pouco tempo antes: a história do homem encontrado entre os caniços por monges pescadores do convento era verdadeira e, sem o ódio de um barbeiro ávido que ela apenas entrevira, já estaria longe, na estrada da Provença...
Perdida no seu sonho, a jovem não viu os olhos de Léonarde encherem-se de lágrimas. Apenas Mortimer se apercebeu e, cobrindo com a sua grande mão os dedos magros da velha solteirona, apertou-os docemente sem dizer nada, mas com um sorriso que se queria encorajador.
O escocês deixou a casa pouco depois. Fiora parecia desinteressada da sua presença, mas quando, à porta, ele a saudou, ela ofereceu-lhe um sorriso tão quente que dissipou o ligeiro mal-estar que se apoderara dele perante a atitude da sua anfitriã.
Ides juntar-vos ao Rei? perguntou ela.
Não. Ele regressa dentro de um mês. Aproxima-se o Inverno e eu vou levar, no castelo, uma existência tranquila de guarnição, que me permitirá visitar-vos mais vezes. Se desejardes caçar, o Rei não vê nisso nenhum inconveniente...
Caçar? Oh não! Desde que matei um homem com as minhas mãos que não suporto a ideia de matar.
Que hipocrisia! disse Léonarde. Nunca vos vi recusar os pratos de coelho, ou as perdizes de Péronnelle. É preciso matar caça para isso!
Sem dúvida, mas não eu. O sangue faz-me horror. Já vi demasiado...
Partido Mortimer, Fiora felicitou Péronnelle por aquela refeição tão conseguida e subiu rapidamente para o seu quarto após ter pedido a Léonarde que lhe fosse buscar Florent.
A esta hora? protestou ela. Que lhe quereis?