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Florent desatou, então, a rir e, içando-se para o cavalo, tomou a trote o caminho do castelo real. Mortimer, com os punhos nas ancas, via-o afastar-se quando Fiora se lhe juntou.

Onde é que ele vai? perguntou ela.

Vai aprender a montar a cavalo! Não é luxo nenhum. Olhai-me para aquilo! Um verdadeiro saco de farinha!

A despeito do que Mortimer afirmara a Florent, nunca Fiora percorrera a tanta velocidade uma tão longa distância e precisou, mais de uma vez, de cerrar os dentes para não se confessar vencida e rogar por misericórdia. Quando pensou discernir no rosto da jovem um certo cansaço, Mortimer utilizou uma maneira muito sua para lhe ressuscitar a coragem:

Se o cavalo que vos leva consegue, também vós conseguis! declarou ele e Fiora, esquecendo o traseiro dorido, as coxas a arder e os rins moídos, aprovou com a cabeça e continuou a infernal cavalgada que, aliás, não acrescentava uma ruga, sequer, ao rosto do escocês.

Aquele homem era feito de aço e, sobretudo, conhecia como ninguém as estradas, os caminhos e os carreiros de França. Graças a esse conhecimento, os viajantes não tiveram de se esconder do cardeal della Rovere: enquanto este descia a pequena velocidade para Châteauroux, La Chatre, Montluçon e Varennes para chegar a Roanne e Lyon no passo tranquilo do seu longo cortejo, os dois cavaleiros, por Vierzon, Bourges e Moulins, atingiram Varennes e Roanne com um avanço confortável sobre o voluptuoso prelado. As jornadas eram grandes, faziam uma quinzena de léguas do nascer do Sol ao crepúsculo. Em cada etapa renovava-se o cerimoniaclass="underline" enquanto Fiora, derreada, se arrastava até ao quarto de albergue que lhe era destinado, se lavava abundantemente e se atirava, depois, para cima da cama onde já se encontrava o seu jantar, Douglas começava por tratar dos cavalos: esfregava-os, limpava-os, lavava-lhes as pernas fatigadas com vinho e depois dava-lhes ração dupla de aveia cuja qualidade ele próprio confirmava antes de tratar de si mesmo. O escocês escolhera em pessoa, nas cavalariças reais, a montada de Fiora, sendo a sua acima de qualquer elogio. Luís XI, de facto, era, para com os seus cavalos, de uma extrema exigência e, se bem que fosse uma pessoa pouco preocupada com a sua própria aparência, só comprava animais de primeira qualidade, nem que, para isso, tivesse que pagar uma fortuna. Era cioso deles e Mortimer sabia que o Rei lhe perdoaria fosse o que fosse, até um atraso que quase se pareceria com uma deserção, desde que lhe devolvesse os animais em bom estado. Aliás, o próprio escocês amava-os demasiado para os tratar de outra maneira.

Durante os onze dias que durou a viagem, ele e a sua companheira não chegaram a trocar cem palavras. Todas as manhãs, Mortimer assegurava-se de que Fiora dormira bem, velava pela sua alimentação e, se lhe perguntava pela sua saúde, era por pura cortesia: a sua maneira de a dardejar com um olhar inquiridor lembrava estranhamente a sua maneira de examinar os cavalos e a jovem estava sempre à espera que ele a mandasse abrir a boca para se assegurar de que ela tinha a quantidade de dentes regulamentar. Em seguida, enunciava os nomes dos lugares que atravessariam antes de fazerem etapa, de novo, ao anoitecer.

Se Fiora sofreu martírios durante os quatro primeiros dias, conseguiu ganhar resistência suficiente para que a parte final do trajecto fosse menos dura e, até, quase agradável. Aquela louca cavalgada através dos campos dourados, crestados, avermelhados pelo começo do Outono, sob um céu doce cujo azul leve perdera o tom macilento dos grandes calores do Verão, tivera o seu encanto. Nenhuma chuva transformara os caminhos em lamaçais e, sob os cascos dos cavalos, a terra tinha um som abafado, quase musical. Enfim, quando atingiram a região das oliveiras e dos ciprestes, quando o ar se encheu do estrídulo das cigarras, invadiu-a um verdadeiro sentimento de alegria e o sorriso que ofereceu a Mortimer irradiava a esperança que ela tinha naquelas terras rosa ou ocre, onde o Sol era o único senhor.

Onze dias após a partida da Casa das Pervincas e depois de terem percorrido sem descanso umas cento e setenta léguas, os dois cavaleiros viram perfilar-se, de um lado e do outro de um largo rio que o pôr do Sol incendiava, duas cidades: uma soberba, dominada por um enorme palácio com coruchéus e pelo campanário romano de uma igreja; a outra, quase tão bela mas de aspecto mais temível, com o alto torreão, o baluarte rodeando o casario baixo e a coroa de muralhas ameadas que, sobre a colina, chamada monte Andaon, encerrava um pequeno burgo e uma abadia. Uma grande ponte ligava as duas margens entre um pequeno castelo do lado de Avinhão e o pesado torreão, a torre de Filipe, o Belo, erguida sobre um rochedo nu. Essa ponte, escarranchada sobre umas ilhotas planas e cheias de vegetação, devia ter conhecido dias melhores porque, se do lado papal mostrava belos arcos de pedra com arcos bem arredondados e suportava uma pequena capela, a parte central era constituída por grossos pranchões que lutavam esforçadamente contra a corrente rápida. Na direcção de Villeneuve, subsistiam apenas dois arcos e Fiora pensou que entre os papas e o Rei de França, senhor de Villeneuve, o acordo nem sempre fora perfeito ao longo dos séculos. Mas ambas as cidades, a ponte, as muralhas e os campanários mostravam a mesma pedra loura, onde se reflectiam as diferentes cores do Sol entre a aurora e o ocaso. Um pouco por toda a parte, os teixos rodeavam a paisagem, guerreiros negros sobre o azul profundo do céu e, nas duas cidades, maciços de amoreiras, de velhos plátanos e de oliveiras assinalavam as praças ou os jardins.

É mesmo belo! disse Fiora, que detivera o seu cavalo para melhor admirar a paisagem.

Sim, mas esquecei a poesia por instantes, senão ainda apanhamos as portas fechadas. Em frente, ainda nos resta percorrer um quarto de légua...

À medida que avançavam, o coração de Fiora enchia-se de alegria, a jovem não conseguia imaginar que uma região tão bela não tivesse sido criada para outra coisa que não a doçura da vida. Depois de Orange, cujos príncipes, os condes de Chalon, tinham preferido virar-se para França após a morte do Temerário, Douglas Mortimer optara pela margem direita do Ródano para evitar entrar em Avinhão propriamente dita. Apesar da extrema fadiga, a jovem esqueceu os seus sofrimentos para se maravilhar, de descoberta em descoberta, como se tivesse acabado de entrar noutro mundo. Ali ainda era Verão e, sobressaindo dos tons mortos dos rochedos, os maciços de alfazema de um belo tom azul-malva, os de alecrim e os de salva perfumavam o ar da tarde. Uma camponesa de braços dourados, com um grande cesto liso cheio de figos, cruzou-se com os cavaleiros e cumprimentou-os alegremente com um sotaque inimitável. A mulher parou para esperar por outra que trazia à cabeça um cabaz de uvas moscatel sobrevoado por dezenas de abelhas, mas com as quais ela não parecia preocupada. Um pouco mais longe era a mancha pálida de um pequeno bosque de cedros azuis, cortinas de ciprestes protegendo as vinhas, sebes de canas secas sussurrando como papel amarrotado sob a brisa da tarde. Como se aproximavam do fim, Mortimer fez com que as montadas seguissem num passo tranquilo. Talvez, também, para melhor admirar os dentes brancos e os pescoços morenos de um grupo de lavadeiras que vinha do Ródano...

Há muito tempo que não vinha aqui suspirou ele subitamente, com espírito. É verdade que é uma bela região. O local ideal para recuperar depois de uma longa provação, se, na verdade, o vosso marido conseguiu cá chegar...

Se é mesmo ele, não o fez de propósito. Disseram-me que estava inconsciente no barco onde os monges o encontraram. Mas, de Lyon aqui, o percurso é bem longo e este rio bem rápido.

O Ródano, em parte seco devido ao Verão, deixava ver numerosos bancos de areia; no entanto, a meio, o rio continuava vivo, carregado de aluvião e devia ser difícil de navegar.

Não é no momento da chegada que ides perder a coragem. Para lá das torres que guardam a porta, podeis aperceber a igreja e os edifícios do convento dos capuchos.