Meia hora mais tarde, de facto, os viajantes, conduzindo os seus cavalos pela brida, subiam a ruela cheia de amoreiras que, da portaria, ia dar ao convento. Ali se encontravam as forjas, os celeiros, as recolhas, as cavalariças, o primeiro pátio e a entrada da horta, tudo dentro dos muros mas fora do claustro, podendo ali entrar viajantes e peregrinos. Um pequeno grupo de errantes de Deus já ali repousava, sentado em círculo por baixo de uma árvore onde um irmão converso lhes distribuía pão e água fresca. Era o primeiro acolhimento. Um pouco mais tarde, após o ofício, conduzi-los-iam à grande sala do albergue, onde poderiam passar a noite.
Fundado em 1356 pelo Papa Inocêncio VI poucos anos após a sua eleição para o trono pontifical, a Casa de Nossa Senhora de Val-de-Bénediction, dedicada às severas regras de São Bento, erguia, na base do monte Andaon e da sua coroa de baluartes, os seus múltiplos edifícios, os seus claustros, o convento tinha três as suas capelas e os alojamentos necessários para cerca de cento e trinta pessoas, sem esquecer os quarenta pequenos jardins que cada monge devia cultivar. Uma grande biblioteca, dormitórios, refeitórios, caves, uma padaria, lagares, oficinas, moinhos, marcenarias, um hospital e até uma prisão, tudo em redor da alta igreja gótica onde repousava, para a eternidade, o Papa fundador, compunham o mais vasto convento de todo o reino de França.
Assim que chegaram, Mortimer pediu hospitalidade para o seu jovem companheiro e para si próprio. O escocês deu-se a conhecer como oficial ao serviço do Rei e, ao mesmo tempo, pediu o favor de uma conversa particular com o Dom Abade, favor que não lhe seria concedido, pelo menos de imediato, se ele não pertencesse ao séquito do soberano. A Fiora, um pouco aborrecida por se refugiar numa mentira, Mortimer explicou que aquilo simplificava as coisas, evitar-lhe-ia ser colocada junto dos peregrinos de passagem e permitir-lhe-ia transpor mais facilmente a clausura, coisa indispensável se o evadido estava instalado nos edifícios conventuais propriamente ditos.
Em vez de serdes Mme. de Selongey, sereis o irmão de messire Philippe... digamos... o cavaleiro Antoine?
Tendes muita imaginação, mas não iremos cometer uma falta grave? Se o Rei sabe...
Não o suportaria, certamente, devoto como é, mas sois capaz de me dizer como pode ele saber da breve visita que dois viajantes fazem a um convento capucho perdido nos confins do reino?
E se for mesmo Philippe? Se ele me reconhecer?
Confessar-nos-emos e pediremos humildemente perdão. O único risco será imporem-nos como penitência a peregrinação a Compostela...
Apesar da sua extrema fadiga, Fiora, felizmente alojada sozinha numa cela da hospedaria esta estava longe de estar cheia não conseguiu conciliar o sono. A calma era profunda, no entanto e a noite, que entrava pela estreita janela, parecia feita de veludo azul-escuro sarapintada de prata, mas o espírito inquieto de Fiora impossibilitava-a de encontrar o menor repouso. A jovem permaneceu horas estendida, de ouvido à espreita, espiando os menores ruídos do campo e do convento, contando as horas à medida que lhe chegava o eco longínquo dos ofícios nocturnos. O pensamento de que Philippe podia, talvez, estar ali, a alguns passos dela, num daqueles numerosos edifícios silenciosos, fazia-lhe ferver o sangue e achar que a noite nunca mais terminava... Além disso, estava calor no seu quarto. A hospedaria estava perto da cozinha e da padaria, o calor das fogueiras destas, mesmo adormecidas, penetrava na espessura das paredes e Fiora lamentava ter aceitado passar a noite no convento. Teria sido mil vezes preferível dormir ao ar livre, sob uma árvore ou ao abrigo de um rochedo, em vez de naquela caixa sufocante, mas a jovem esperava que o Dom Abade os tivesse recebido naquela mesma noite...
Quando Mortimer apareceu para a acordar, ela acabava, de cair, finalmente, num sono pesado e ao ver as suas pálpebras inchadas e as faces pálidas devido à longa vigília, ele mostrou-se muito descontente.
Não tenho a culpa se não consegui adormecer! ripostou ela com mau humor.
Eu não estou zangado convosco, estou zangado comigo próprio. Devia ter-vos deixado num albergue qualquer e vir dormir aqui sozinho. Vou mandar que vos tragam água fresca para vos lavardes. Depois, ide ter comigo à sala para restaurardes as vossas forças. Tendes tempo! O reverendíssimo abade receber-nos-á depois da missa.
Uma hora mais tarde, Fiora, bem lavada, penteada, sem nenhum cabelo a sair do capelo, seguia na companhia do escocês o irmão converso encarregue de os conduzir à residência do abade, que dava para a pequena praça da igreja. Enquanto caminhava, a jovem olhava à sua volta, espiando cada silhueta, mas nenhuma se parecia com a que ela esperava.
Colocando um joelho em terra diante do dignitário supremo do convento, Fiora reencontrou a impressão penosa sentida quando Mortimer decidira que ela conservaria o seu disfarce. O abade não era um homem imponente, mas, com o seu hábito branco atado com uma corda, o seu crânio tonsurado onde os cabelos cinzentos só formavam uma estreita coroa evocando a auréola e o rosto magro e tisnado que parecia ter sido talhado no tronco de uma oliveira, parecia-se com um daqueles santos cujas estátuas rígidas povoam as igrejas e as capelas. Sobretudo, saída da sombra das sobrancelhas, a chama dupla de um olhar azul que parecia trespassar até à alma quase fez perder o porte à jovem.
Incapaz de articular uma palavra, Fiora aceitou o tamborete que lhe designaram e deixou que Mortimer explicasse o que os levava ali. Quando o escocês terminou, o abade deixou o silêncio invadir a pequena sala austera onde os recebia e o olhar azul voltou a pousar-se em Fiora, que não conseguiu evitar que as suas faces se enrubescessem. Uma angústia provocava-lhe um nó na garganta e as lágrimas subiram-lhe aos olhos, porque, como acabara de ser contada pelo escocês, aquela história de salvamento e de um homem privado de memória parecia-lhe, agora, absurda.
Trata-se, sem dúvida, de uma... lenda disse ela com uma voz rouca que ia bem com a sua personagem uma história que as pessoas de bem gostam de... espalhar?
Acreditas assim tão pouco na palavra de monsenhor della Rovere, meu filho? Ele só disse a verdade...
A verdade?
Sim. No ano passado, durante as vigílias de Natal, os nossos irmãos pescadores, de facto, trouxeram para aqui um homem que encontraram num barco encalhado nos caniços. Esse homem, devorado pela febre, parecia chegado ao último grau da resistência humana... Nós conseguimos fazer com que regressasse à vida com muito esforço, mas quando ele recuperou a consciência, constatámos que o seu espírito não conservava nada do passado... As provações sofridas tinham, talvez, ultrapassado o limite das suas forças...
Perdoai-me, Reverência disse Mortimer com respeito ele não fala?
Sim, mas muito pouco. Apenas algumas palavras e, quando o interrogámos, ele não nos respondeu nada...
Nós... nós podemos vê-lo? pediu timidamente Fiora, incapaz de resistir por mais tempo. O olhar azul regressou ao seu rosto e ela pensou ver nele uma espécie de compaixão.
Não. É impossível.
Ele está... morto?
Não. Partiu.
Partiu? Quando? Como?
A mão de Mortimer pousou-se no seu braço e apertou-o, para incitar a jovem a ter mais prudência, mas a voz do abade, profunda e suave, não mostrou qualquer impaciência perante aquela falta de conveniência.
No último mês de Maio, por ocasião da festa das Rogações, as grandes ladainhas públicas tradicionais atraíram a esta cidade mais gente do que o costume. No começo da Primavera, o rio tinha inundado uma parte de Villeneuve e as terras em redor e tratava-se de pedir a Deus, mais instantaneamente do que nunca, que protegesse as colheitas que se aproximavam. Ao mesmo tempo, numerosos peregrinos a caminho da Galiza transpuseram a nossa porta de Saint-Bénézet e a hospedaria