1 Rogações vem do latim rogare (pedir). Essa festa desenrolava-se durante os três dias que precediam a Ascensão.
desta casa, tal como a dos nossos irmãos beneditinos de Saint-André, na cidadela, viram-se superlotadas. Aquilo foi como que uma vaga e quando ela se retirou, aquele que, à falta de um nome, nós chamávamos de irmão Inocente, tinha desaparecido com ela... Não sabemos o que lhe aconteceu.
Partiu!
A dor no rosto de Fiora era tal que o abade, inclinando-se para ela, tocou-lhe na mão com a ponta dos dedos.
Não deixeis que o desgosto vos invada! No fim de contas, nada nos diz que esse infeliz é aquele que procurais!
Vossa Reverência consente em no-lo descrever? perguntou Mortimer para acudir à sua amiga.
Nós ligamos pouco ao aspecto físico dos homens, meu filho. Que posso eu dizer-vos? Ele era grande, de cabelos castanhos e teria, talvez, trinta e cinco anos. Nós pensámos que ele devia ter sido soldado, porque o seu corpo tinha várias cicatrizes, pelo que me disseram. Mas eu posso mandar buscar o irmão enfermeiro. Talvez ele vos diga mais qualquer coisa!
Tal como os outros irmãos conversos, o enfermeiro não era obrigado à regra do silêncio que era a dos Capuchos e o homem teria sido capaz, à sua conta, de falar pelo convento inteiro. Além disso, parecia ter votado uma espécie de amizade pelo desconhecido. Se o temor respeitoso que o abade lhe inspirava não o tivesse impedido, ter-se-ia lançado, acerca do ”irmão Inocente”, em considerações sem fim, às quais o seu sotaque cantante conferia um sabor inesperado, mas que arruinava um pouco a personagem. Para ele, o desconhecido era um bom rapaz ao qual ele reprovava, sobretudo, o mutismo, mas foi incapaz de dizer de que cor eram os seus olhos.
Ele tinha-os sempre meio fechados explicou ele. Creio que o Sol lhos deve ter queimado quando ele estava no barco, porque estavam todos vermelhos quando ele chegou aqui. Que posso eu dizer-vos mais? Ele não falava como toda a gente e, durante o período de grande febre, eu não compreendia nada do que ele murmurava...
Sua Reverência acaba de nos dizer que ele tinha vestígios de ferimentos? disse o escocês.
Cicatrizes? Tinha, pois! Por todo o corpo! Eu nunca tinha visto tantas! Ao ponto de não poder dizer onde!
A esperança, por um instante regressada, diminuiu de novo no coração de Fiora. Sim, Philippe fora ferido várias vezes em diversos combates, mas não ao ponto de estar coberto de marcas como pretendia aquele bravo mongezinho que, na verdade, parecia ainda mais inocente do que o seu protegido. Encorajado pelo silêncio do abade, lançou-se em novas descrições que acabaram por acabrunhar a jovem: o homem era muito piedoso, mais tímido ainda e muito entendido nos trabalhos do campo. Era também...
Chega, meu irmão! cortou o superior. Creio que os vossos propósitos não interessam muito aos nossos hóspedes. Uma tal atitude não corresponde muito ao que procurais, pois não?
É verdade admitiu Fiora, atravessada, então, por uma ideia digna de uma filha de Florença, onde se encontrava, ao menor acontecimento, um pintor ou um escultor desenhando com traço rápido. Mas, não haverá aqui nenhum monge capaz de fazer um desenho de memória, bem entendido, um retrato?
Os nossos irmãos conversos são incapazes disso. Só, talvez, o nosso irmão iluminista, mas ele nunca viu o nosso hóspede, que não podia transpor a clausura.
Só restava a Fiora e a Mortimer agradecerem aos religiosos e despedirem-se. A jovem retinha, a custo, as lágrimas, tal era a esperança que depositava no incidente do homem do barco. Como se o rio terrível que era o Ródano tivesse podido transportar um barco tão frágil durante uma distância tão grande sem o virar!
Iam os dois transpor a porta quando o pequeno irmão enfermeiro, que parecia muito infeliz, ergueu um dedo tímido para pedir permissão para acrescentar mais qualquer coisa:
O que é? disse o abade um pouco irritado. Parece-me que já falastes o suficiente, meu irmão...
O interpelado ficou muito vermelho e, baixando a cabeça, dirigiu-se para a porta.
Dizei! disse Mortimer, condoído. Tendes permissão!
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Oh! Espantar-me-ia muito se vos interessasse, mas... aquele homem devia amar as flores. No entanto, nunca o confessou.
Porquê? Não é vergonha nenhuma amar as flores!
Era, também, o que eu pensava, mas quando ele ficou curado... enfim, quase... disse-me que as flores não lhe lembravam nada. Porém, no auge da febre, ele repetia sempre a mesma palavra, parecida com ”flor”, mal pronunciada, claro, e com o sotaque dele. Soava qualquer coisa como ”fior...fioure...”.
Mortimer agarrou no enfermeiro pelos ombros:
Fiora?
Seguiu-se um curto silêncio e cada um dos participantes da cena reteve, por instinto, a respiração. E, subitamente, o pequeno monge sorriu:
Sim... sim, creio que era isso! Agora que a dissestes, creio que a palavra era ”fiora”. Isso quer dizer o quê? É um nome de flor, não é?
Sobretudo, é o nome da mulher dele. Obrigado, meu irmão! Prestastes-nos um grande serviço e nós estamos-vos muito reconhecidos.
Fiora estava incapaz de articular a menor palavra. Vencida pela fadiga e pela emoção, soluçava perdidamente com a cabeça entre as mãos, tendo esquecido tudo o que a rodeava. Só quando sentiu uma mão no ombro é que ergueu o rosto desfigurado pelas lágrimas e reencontrou o olhar azul que tanto a impressionara. Dessa vez, aquele olhar azul estava cheio de compaixão:
Deus tomou conta dele. E continuará a velar por ele, tenho a certeza. Não choreis mais, minha filha!
Sabíeis?
Digamos que adivinhei no momento em que dobrastes o joelho diante de mim. Acrescento que vos perdoo essa... mascarada. Ela foi-vos ditada pelo vosso grande desejo de saber rapidamente um pouco mais sobre o nosso evadido. Mas, evidentemente, deveis abandonar esta casa imediatamente, antes que outro, que não eu, descubra o vosso embuste. Espero que encontreis depressa o conde de Selongey.
Obrigada! Oh, obrigada!
Deixando-se cair por terra, a jovem pegou na mão do monge para a beijar, mas só pôde aflorá-la, porque ele retirou-a suavemente.
E agora ide e que Deus vos tenha na Sua santa guarda! Pedir-Lhe-ei que abençoe a vossa busca, assim como vos abençoo...
O gesto fez curvar também Mortimer, que se encontrava ao lado de Fiora. O abade bateu palmas para chamar o irmão converso para que reconduzisse os visitantes à hospedaria. Antes de sair, Fiora perguntou:
Gostaria de contribuir com uma esmola para esta casa, em agradecimento pelos cuidados recebidos. Vossa Reverência aceitaria...
Obrigado pela vossa intenção, mas a mim, não. Dai a esmola ao nosso hospital, para que possa suavizar os sofrimentos dos pobres doentes.
Um momento mais tarde, Mortimer e Fiora abandonavam o convento e viam-se de novo na grande rua que atravessava a cidade de um lado ao outro.
E agora, que fazemos? perguntou o escocês. Não quereis partir imediatamente, imagino?
Não. Preciso de um pouco de repouso... e creio que precisamos de falar, de tentar imaginar para onde foi Philippe depois de deixar esta cidade...
Para o repouso do corpo e a clareza das ideias, não há nada melhor do que um bom albergue! Segui-me!
CAPÍTULO VII
UMA SITUAÇÃO DIFÍCIL
Villeneuve-Saint-André não era uma cidade como as outras e Fiora pôde aperceber-se disso ao percorrer, ao lado de Mortimer, a longa rua que só entrevira na véspera, já que o convento se encontrava junto das muralhas. Magníficos palácios, rodeados de jardins, ladeavam-na, alguns em perfeito estado e outros ameaçando ruína.
São as livrées dos antigos cardeais da corte pontifícia que ocupou Avinhão até ao começo deste século explicou Mortimer. As casas de campo deles, por assim dizer.