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Livrées. Que nome esquisito! Em Florença chamamos-lhes villas...

O nome deve-se disse o escocês que, decididamente, sabia muitas coisas a que cada um dos seus proprietários foi obrigado a livrer a sua casa aos príncipes do Sacro Colégio. Por dinheiro sonante, claro, mas o nome ficou...

Algumas daquelas moradias tinham a severidade dos palácios romanos com qualquer coisa mais. Bastava uma janela com pequenas colunas, uma grande ”amêndoa” de pedra decorada com vitrais coloridos, uma roseira obstinada em suavizar as chagas de uma fachada leprosa, uma moita de mirto, uma vinha exuberante ou uma acácia perfumada, para que tudo fosse de uma amabilidade sorridente. As laranjeiras e os limoeiros transbordavam dos jardins tratados ou não e as grandes pedras de armas que dominavam cada portal conservavam vestígios das

NT: Postas à disposição.

cores ou do ouro que as iluminavam em tempos. Por fim, cobrindo tudo o que não era telhado em forma de terraço engrinaldado de jasmim ou de hera pequena, as telhas cor-de-rosa romanas, arredondadas e quase carnais, viravam para o céu azul-brilhante as suas formas curvilíneas.

Era dia de mercado. Na pequena praça sombreada de plátanos cujas largas folhas, de um verde cambiante, emprestavam a sua frescura, algumas camponesas, de coifas leves na cabeça, sentavam-se, direitas e orgulhosas como estátuas gregas, no meio de cestos rasos onde pipilavam aves de capoeira e cabazes onde, juntamente com grossas azeitonas suculentas, se viam todas as riquezas do campo e do jardim. Agrupados sob-as árvores, pequenos burros desaparelhados aguardavam placidamente que fossem horas de regressar a casa. Vozes alegres trocavam brincadeiras e, algures, esvoaçava uma canção apoiada por um sopro de flauta...

Presa de uma súbita fome canina, Fiora comprou um queijo de cabra que lhe ofereciam sobre uma bela folha de videira e um grande cacho de uvas douradas, que partilhou generosamente com Mortimer.

Tendes medo que não vos alimentem no albergue? perguntou ele, rindo. Se a cozinha continuar como era aquando da minha última visita, não tereis razão de queixa...

Não sei porquê, mas morro de fome. Já agora, o que é que um escocês vinha aqui fazer?

Oh, nada de extraordinário disse Mortimer voluntariamente evasivo. Uma pequena missão de que o Rei me encarregou. Fiquei aqui um mês, mas não foi a coisa mais desagradável da minha vida.

Fiora não procurou saber mais. Bruscamente, devido à magia daquela terra provençal que em muitas coisas lhe fazia lembrar a sua região florentina, a esgotante corrida em busca de uma sombra acabava de ganhar as cores delicadas de umas férias, de uma viagem de descoberta, em que o tempo se esquece para grande prazer dos olhos e do olfacto. As horas cruéis tinham-se apagado perante uma certeza: Philippe estava vivo. Fiora, a partir daí, podia conceder a si própria o direito de respirar um pouco...

Ao abrigo da colegiada de Nossa Senhora, cuja torre quadrada e coruchéus pareciam proteger a pequena cidade como uma galinha os seus pintos, o albergue Grand Prieur abria para a praça do capítulo as suas salas frescas que cheiravam a verbena e ervas aromáticas. Atrás, um jardim abundante de loendros, laranjeiras, mirto, ciprestes, pinheiros, roseiras, jasmim e muitas outras plantas juntava-se ao do priorado pertencente aos abades de Saint-André. Ali, estendiam-se, sobre a colina de Montaut, os vestígios do antigo palácio do cardeal Pierre Bertrand, bispo de Autun e fundador, em Paris, do colégio do mesmo nome. Aquele conjunto formava um daqueles lugares privilegiados onde a beleza da natureza realçava o encanto do trabalho dos homens e onde todas as coisas se juntavam para o contentamento dos olhos e a paz de espírito.

No tempo em que, no seu palácio, o cardeal Bertrand se comprazia em receber os grandes deste mundo, a hospedaria acolhia os senhores dos seus séquitos e socorria as cozinhas por vezes defeituosas dos príncipes da Igreja seus vizinhos. Por outro lado, as gentes de Avinhão transpunham de boa vontade a ponte de Saint-Bénézet para desfrutar de uns momentos de frescura sob as sombras do jardim e, sobretudo, para saborear as maravilhas de uma cozinha célebre num raio de vinte léguas.

A partida da corte papal poderia ter dado um golpe fatal no Grand Prieur, mas isso não aconteceu. Chegara o tempo dos núncios e Avinhão herdou da era dos pontífices uma população cosmopolita, que dela fez um grande local de negócios onde bancos e casas de comércio possuíam escritórios, quando Marselha ainda não tinha nada disso. De facto, sendo Avinhão a principal ligação entre o mar e os grandes mercados de Lyon e Genebra, Villeneuve, apesar de pertencer ao Rei de França, continuou a beneficiar de uma situação excepcional e o Grand Prieur não perdeu nada da sua fama. Bem pelo contrário, porque os seus proprietários, mestre Jacques e a sua mulher Françoise, possuíam, ao mais alto grau, a difícil arte de acolher cada hóspede, viesse ele de onde viesse e da maneira que mais lhe convinha. O sorriso da dama Françoise teria desarmado uma

Dom Abade,

viúva e feito rir de contentamento um anacoreta antes de deixar ao seu marido o cuidado de o fazer mergulhar, até à condenação final, no saboroso pecado da gula.

Tendo recuperado uma parte do que fora a sumptuosa livrée do cardeal Arnaud de Via, sobrinho do Papa João XXII e construtor da colegial vizinha onde repousava, a casa não era muito grande, mas possuía todo o refinamento do palácio ao lado, pelo menos a austeridade, além de uma certa arte de viver que cheirava bem ao sol da Provença. Ao entrar nela, Fiora teve a impressão de que uma mão invisível lhe tirava dos ombros o peso da fadiga e da angústia que os oprimia há semanas e enquanto Mortimer, de olhar incendiado pela recordação das delícias passadas, parava na cozinha, ela deixou-se conduzir até um quarto cujas lajes eram de argila cor-de-rosa, cujas paredes brancas valorizavam os móveis bem encerados e onde um grande ramo de flores multicor estava disposto diante de uma pequena estátua da Virgem. A canção alegre de uma fonte entrava pela janela aberta para o jardim...

Demorando apenas o tempo para tirar as botas e a túnica de veludo, Fiora estendeu-se no leito de delicados lençóis azuis, que cheiravam a resina de pinheiro e alfazema. A jovem adormeceu como uma pedra.

Fiora dormiu uma boa parte do dia e a tarde já caía, azul e malva, quando se juntou a Mortimer na grande sala abobadada onde se elaboravam os mistérios da cozinha. Sentado perto da vasta chaminé branca onde estava a assar um quarto de carneiro, este bebia vinho branco, ao mesmo tempo que devorava um grande bocado de pão recheado de cebolas, de azeitonas pretas, de pimenta e de anchovas que, visivelmente, deixava escorrer azeite. No outro extremo da mesa de carvalho, longa e estreita, mestre Jacques batia ovos sob uma espécie de coroa grosseira feita de um pedaço de tonel no qual estavam pendurados cachos de uvas do ano anterior, salsichas igualmente quase tão secas e grandes cebolas arroxeadas.

Então perguntou ela sentando-se junto dele soubestes alguma coisa?

Nada! Penso que messire Philippe deve ter partido com os peregrinos e, nesse caso, como distingui-lo dos outros? Enquanto dormíeis, passeei pela cidade, fui conversar com os soldados do torreão e fiz algumas perguntas. Todos sabiam, evidentemente, da história do homem recolhido pelos monges, mas, felizmente, nenhum imaginou que ele pudesse ter vindo de Lyon. De qualquer maneira, ninguém o viu e, portanto, não o podiam reconhecer quando ele partiu. Tomai, provai isto!

Não, obrigada. É repugnante!

Por causa do azeite? Mas, é delicioso!

O escocês cortou um bocado e estendeu-lho. Ao ver aquilo, mestre Jacques largou os seus ovos, pegou num grande guardanapo branco e colocou-o, com um sorriso encorajador, em redor do pescoço da jovem.