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Caída sobre as almofadas que guarneciam a sua cadeira, Fiora, de nariz franzido, olhos fechados e faces pálidas, parecia prestes a perder a consciência. De facto, a jovem lutava contra dois sentimentos contraditórios: a alegria e a cólera. A alegria pela certeza de que Philippe recobrara a memória, a cólera porque, mal saíra do pesadelo que quase o submergira, correra a juntar-se à sua querida duquesa! O que significava, sem dúvida, que jamais regressaria para ela e que virara definitivamente a página onde estava escrito o nome de Fiora...

Uma frescura na testa incitou-a a reabrir os olhos. Antoine de Borgonha humedecia-lhe as têmporas com a ajuda de uma toalha molhada, tomado por uma inquietação tão visível que a fez sorrir:

Muito obrigada, monsenhor, mas não é nada... É só a alegria! De facto, foi Deus que fez com que nos encontrássemos.

Também acho, mas bebei um pouco deste vinho de Espanha, que eu trago sempre comigo em viagem! Far-vos-á bem e o Senhor não verá nisso nenhum inconveniente.

Fiora bebeu, mas como a sua cólera tinha aumentado, pediu autorização para se retirar, alegando uma necessidade de repouso bem natural. Cortesmente, o príncipe levou-a até à porta do seu quarto pela mão.

Faremos viagem juntos, amanhã, já que seguimos o mesmo caminho?

Aquela pergunta simples modificou instantaneamente os projectos imediatos de Fiora que, aliás, não sabia muito bem onde estava no instante precedente.

Não, monsenhor, lamento, mas quero ir a Bruges. Mas... se Vossa Senhoria quisesse acompanhar dame Léonarde até à minha casa de la Rabaudière, ficar-lhe-ia infinitamente reconhecida. Ela tem demasiadas dores para conseguir suportar novamente uma longa viagem...

Com prazer, mas achais prudente lançar-vos assim pelos grandes caminhos?

O meu servidor será suficiente como guarda e não conto estar muito tempo ausente.

Foi mais difícil fazer com que Léonarde aceitasse aquela mudança de programa. A velha solteirona lançou fogo e chamas, esconjurando o ”seu cordeirinho” a renunciar àquele projecto insensato, mas conhecia demasiado bem a jovem para saber que nada modificaria a sua decisão e que ela estava pronta a dar a volta ao mundo para levar a cabo o seu projecto um tanto ou quanto vingador.

Estais contente, mas ainda estais mais furiosa, não é verdade? perguntou ela.

É verdade! Já é tempo de Philippe se lembrar que existo e que tem de escolher, sem mais delongas, entre a sua duquesa e eu!

Nunca é bom lançar um ultimato a um homem, sobretudo um homem do carácter de messire Philippe. Não vos bastou o último?

Bastou, mas eu acreditava no amor dele...

Lembrai-vos do que me contastes! O seu delírio, quando ele estava doente em Villeneuve!

Fiora teve um pequeno sorriso triste, rapidamente varrido por uma nova onda de cólera:

Muito bem, tenho de acreditar que a minha recordação chega para lhe povoar os pesadelos! Simplesmente, agora, tenho uma filha que amo e da qual tive de me separar. Portanto, entendo que, pelo menos, o meu sacrifício serve para qualquer coisa. Já é tempo de ter com Philippe uma explicação definitiva...

Tão definitiva como isso? Dizei-lhe, então, que tem um filho! Ficarei muito espantada se essa notícia não for suficiente para o fazer mudar de ideias. Mas... contemos com o pior: que fareis se ele vos repelir?

Fiora não respondeu de imediato. A pergunta, na sua brutalidade, apanhara-a como um chicote e a dor que sentiu fê-la compreender que nunca conseguiria expulsar a imagem de Philippe do seu coração. No entanto, naquele instante, teria preferido morrer a conformar-se. Com uma súbita violência, disse:

Nesse caso, nada me deterá aqui. Pegarei nos meus dois filhos e vou para Florença. Convosco, evidentemente. Pelo menos, lá, estarei rodeada de gente que gosta de mim!

No dia seguinte de manhã, deixando Léonarde prosseguir o seu caminho na companhia do capelão de Antoine de Borgonha, Fiora, seguida por um Florent perdido de felicidade, retomava, a grande velocidade, a estrada de Paris, que queria atravessar sem parar a fim de atingir a Flandres.

CAPÍTULO IX

EM BRUGES...

De regresso a casa, Léonarde esforçava-se por acalmar as suas apreensões, esperando que a longa corrida através do norte de França abrandasse a cólera de Fiora, mas enganava-se. Enquanto o seu cavalo em Beaugency trocara as mulas por duas sólidas montadas a levava na direcção do palácio de Maria de Borgonha, a jovem não cessava de remoer o seu desgosto e a sua decepção. Desta vez, ninguém lhe poderia atribuir qualquer responsabilidade no estranho comportamento do marido. De facto, a verdade estava ali, cegante na sua claridade, e dizia-se em poucas palavras: Philippe nunca a amara realmente.

Desejara-a, sim, e disso estava segura. Aliás, qual fora o único desejo exigido por ocasião do casamento? Uma única noite! Era verdade que, mais tarde, ao reencontrar Fiora prisioneira do Temerário, o seu ciúme acordara ao saber daquilo a que a jovem chamara ”o episódio Campobasso” e, depois da queda de Nancy, amara-a apaixonadamente... durante três noites. Mas, e depois? Bem, depois, só tivera uma ideia: ir bater-se pela duquesa Maria, juntar-se à duquesa Maria, fazer de cavaleiro da duquesa Maria... aquela insuportável duquesa Maria para a qual ele se apressara a regressar assim que fugira do convento de Villeneuve! E, agora, era no séquito daquela mulher que se encontrava! Era uma verdadeira princesa, a duquesa Maria, nascida sob os tectos dourados de um palácio e não na palha de uma prisão. Além disso, diziam que era encantadora e como se isso não bastasse, possuía a mais incomparável das auréolas: era a filha do Temerário, esse príncipe agora quase lendário, que Philippe venerava tanto ou mais do que se fora seu pai!

À medida que o tempo passava e as léguas desfilavam sob os cascos do seu cavalo, aquela ideia aferrava-se cada vez mais no espírito de Fiora e tornava-se evidente, irritante, como uma queimadura em vias de sarar: coça-se, de repente a crosta sai e tudo volta ao princípio...

Por seu lado, Florent, passada a primeira alegria, sentia-se invadido por uma inquietação que ia aumentando. A mulher de rosto fechado, olhar duro, que cavalgava a seu lado durante todo o dia sem dizer uma palavra e que, chegada a noite, se fechava no quarto de um albergue para ter o repouso suficiente, deixando-o livre o resto do tempo, não era, não podia ser aquela donna Fiora que ele adorava em silêncio. Sem saber o que determinara aquela viagem insensata pouco depois do parto, o jovem sentia que se tratava de uma coisa grave, de uma coisa que a fazia sofrer. Desse modo, ansiava e temia ao mesmo tempo surgir no horizonte aquela cidade de Bruges que ele conhecia um pouco por ali ter acompanhado, em tempos, Agnolo Nardi, que fora em negócios. Uma coisa parecia certa: Fiora ia a caminho daquela cidade como se fosse para se encontrar com um inimigo.

Quando, no fim de uma planície ondulada com longos canais cuja água irisada reflectia o céu e sarapintada de moinhos de grandes velas surgiu, por fim, Bruges, Fiora deteve o seu cavalo para melhor contemplar o inimigo. A jovem teve de confessar a si própria que a cidade era bem bela e o seu rancor ganhou novas forças enquanto a admirava...

Construída sobre a água do Reye e sobre um lago como Veneza sobre a sua lagoa, a rainha da Flandres debruava o céu instável com uma renda de pedra loura e rosa. Sob a delgada torre de menagem, um pouco inclinada, onde os vigias se encontravam, tão alto que mais pareciam a meio caminho do céu, os pinheiros mansos, dourados, dominavam de forma soberba os telhados de telhas cor de carne que, desde o reinado do duque Filipe, o Bom, tinham substituído o colmo e a madeira para maior segurança. Quanto à cintura de defesa, assente na água profunda do rio, estava rodeada de salgueiros prateados, de hera e de tufos de goivos ruivos. Aliás, defendida daquela maneira pelas águas que a isolavam de terra firme, Bruges mal necessitava das suas muralhas.