Eles também rezam pela alma pecadora do Temerário que, esse, bem precisa de orações por todo o mal que fez.
Dizem que monsenhor Renato vai muitas vezes recolher-se à tumba dele, onde ardem velas dia e noite. São os monges de Notre-Dame que estão encarregues da sua manutenção, mas parece que o duque tenciona fundar um convento de franciscanos cuja capela será a sua própria sepultura e a dos seus descendentes. Ele não quer ser enterrado perto do seu inimigo.
Compreendo-o, mas não seria mais simples mandar o borgonhês para Dijon?
Para acordar os entusiasmos? É melhor que, depois de morto, o Temerário fique aqui como prisioneiro!
Não sei se será uma boa solução. Vem gente de toda a parte para ver o túmulo dele. Dentro em pouco será palco de peregrinações.
Os dois homens acabaram a refeição e saíram após uma saudação aos presentes. Fiora seguiu-os com os olhos e depois chamou o estalajadeiro com um gesto:
É longe, daqui a Nancy? perguntou ela.
Umas vinte léguas. Não é grande coisa para as pernas de um cavalo, meu jovem senhor. Também quereis ver a tumba do duque Carlos?
Talvez...
E como Florent, surpreendido, a olhasse de olhos muito abertos, ela sorriu-lhe gentilmente:
Creio disse-lhe ela que vamos fazer um desvio por Nancy No fim de contas, não temos assim tanta pressa.
Quereis mesmo regressar a Nancy? perguntou o jovem, espantado. No entanto, nunca fostes muito feliz, lá.
Na verdade, quando Léonarde e ele próprio, guiados por Mortimer, tinham ido ter com Fiora à capital da Lorena quando ainda nas mãos do Temerário, tinham encontrado Fiora, não apenas prisioneira do duque, mas também ferida e num triste estado.
Quando fostes ter comigo, eu não o era, de facto, mas logo depois da morte do duque, conheci três dias de felicidade. Não é muito, três dias, mas ainda hoje me são infinitamente preciosos. Além disso, vive lá uma pessoa a propósito de quem, em
1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário
Roma, fiz uma promessa. Confesso que me tinha esquecido dessa promessa, mas como estamos perto, seria imperdoável não a cumprir.
A jovem calou-se. Florent compreendeu que ela não diria mais nada e não lhe fez mais perguntas, sabendo que não responderia. O jovem contentou-se em escoltar a jovem até ao seu quarto e em lhe desejar boas-noites. No dia seguinte, em vez de continuarem para Joinville e Chaumont, os dois viajantes viraram para leste e dirigiram-se a Nancy.
Um pouco mais de dois anos não eram suficientes para curar as inumeráveis feridas sofridas pelo ducado da Lorena, e os vestígios eram numerosos ao longo do caminho: aldeias incendiadas onde algumas casas cobertas de colmo novo surgiam corajosamente das ruínas, castelos meio destruídos, abadias ou priorados transformados em estaleiros onde os monges, em cima de escadas e de mangas arregaçadas, trabalhavam com colheres de pedreiro, com picaretas ou plainas; caminhos de tal modo danificados pelas carroças militares que a erva, tal como depois da passagem dos cavalos de Átila, não crescia e, nos campos, demasiadas mulheres substituindo os homens que não regressariam nunca mais. Demasiadas cruzes novas, também, nos cemitérios ou até nos caminhos, onde os soldados sem nome tinham caído, amigos ou inimigos. No entanto, sob o sol da Primavera, toda aquela gente a trabalhar e os campos de novo semeados falavam de esperança e provavam a coragem de um povo.
A vista de Nancy também foi reconfortante. Tinham tapado as trincheiras cavadas pelos Borgonheses e nos bairros que tanto tinham sofrido, assim como nas muralhas, trabalhavam numerosos operários. Apesar dos graves e evidentes danos sofridos por uma cidade que se tinha batido até ao limite das suas forças e até à vitória, sob o céu azul salpicado de pequenas nuvens brancas viam-se brilhar os telhados em tempos arrombados. Sobre as muralhas, os soldados de vigia mostravam as suas armas cintilantes, contrastando com as feições tranquilas de homens que sabem não ter nada a temer: nenhum inimigo voltaria a descer das alturas de Laxou, ou de Maxéville, nenhum acampamento gigantesco estenderia de novo os seus pavilhões sumptuosos, dominados por um grande estandarte violeta, negro e prateado. Os rebanhos, que não voltariam a ser dizimados, pastavam tranquilamente nos prados e o lago de Saint-Jean, perto da sua comendadoria em ruínas, estava purificado dos cadáveres que ali tinham sido semeados.
A cidade estava bem guardada. Os dois viajantes aperceberam-se disso quando, ao passarem pela porta de la Craffe, que se abria para a rua principal de Nancy, foram detidos pelo corpo da guarda. Um grande diabo, armado até aos dentes, perguntou-lhes o que vinham fazer à cidade.
Uma peregrinação respondeu Fiora. Vimos rezar ao túmulo do último duque de Borgonha. É proibido?
Não, não... Mas cada vez vem mais gente como vós. Sois da Borgonha, claro?
Quase. Eu sou a condessa de Selongey e monsenhor Renato conheceu bem o meu marido. A mim também, aliás, mas não pretendo obrigá-lo a receber-me. Desejo, apenas, ir rezar ao túmulo...
Onde contais ficar?
Não sei. Não havia muitos albergues quando o duque Renato reconquistou a cidade, mas suponho que exista um ou dois?
Sim. Mas, se estivestes aqui por ocasião do cerco, conheceis alguém?
Aquele interrogatório começava a irritar Fiora, já fatigada, da viagem. Ainda por cima porque, enquanto a interrogavam, outras pessoas, que parecia terem percorrido um longo caminho, entravam sem que ninguém lhes perguntasse fosse o que fosse.
Que significam todas essas perguntas? perguntou ela com altivez. Se vos inspiro qualquer dúvida, mandai um daqueles homens que estão além a jogar tranquilamente aos dados ao palácio para perguntar se posso ir à colegial de Saint-Georges! Disse-vos o meu nome e isso já é uma grande concessão.
O problema é que é difícil acreditar em vós. Pareceis um rapaz e dizeis que sois... como dissestes?
A condessa de Selongey Viajo vestida de homem porque é mais cómodo, mas se não acreditais em mim...
A jovem tirou o capuz que lhe tapava a cabeça, deixando cair sobre os ombros uma grande massa de cabelos negros e brilhantes, para a qual o homem olhou com interesse.
Chega-vos? Poucos homens possuem, parece-me, cabelos assim tão longos?
Sim, sim disse o outro, teimoso mas é justamente o assunto que vos traz aqui que é cada vez menos claro! Uma mulher vestida de homem! Onde já se viu?
Em muitos sítios, mas, aparentemente, vós não sois loreno?
Não sou loreno, eu, que nasci em Toul?
Nunca ouvistes falar de Jehanne Ia Pucelle? Domrémy não fica assim tão longe... A essa nunca a viram de saias!
Sim, sim! disse o soldado, que devia gostar muito daquele advérbio mas ela andava na guerra, ela... ao passo que vós podíeis ser uma espia, o que não me espantaria muito!
Nunca mais acabamos com isto! soprou Florent, farto. Fiora não tencionava deixar-se deter por um militar de ideias curtas. Entrando na casa da guarda, a jovem avistou papel e um tinteiro com uma pena em cima de uma mesa. Sentando-se de través num tamborete, escreveu algumas linhas que assinou antes de as entregar ao porteiro:
Fazeis-me o favor disse ela suavemente de levar isto ao palácio que está a dois passos e que eu conheço bem por lá ter vivido? Espero aqui a resposta!
Indeciso, o guarda virava e revirava a folha de papel nos dedos quando um homem já idoso, elegantemente vestido com um traje vermelho-escuro por baixo de uma grande capa atirada negligentemente para cima dos ombros, entrou na casa da guarda:
Sargento Gachet disse ele venho prevenir-vos de que estou à espera de um carregamento de ardósia que encomendei a meias com messire de Gerbevillers, bailio da Lorena, e que espero que o deixeis passar com mais facilidade do que as minhas farinhas da semana passada.
Mas é claro, messire Marqueiz, mas é claro! disse o outro já todo sorrisos e que, não fora a armadura, se teria dobrado em dois. Eu estou, bem o sabeis, inteiramente às vossas ordens...