Mas o recém-chegado já não o ouvia. Olhava para o falso rapaz e, com um grande sorriso no rosto sulcado por pequenas rugas muito finas, estendia os braços num gesto de boas-vindas:
Donna Fiora! Sois mesmo vós, não é verdade?
Sou mesmo eu, messire Marqueiz exclamou ela, respondendo espontaneamente, também com os dois braços, àquele acolhimento caloroso. Sinto-me muito feliz por vos ver...
Ides a nossa casa, não?
Não me atrevo. Já vos estorvei o suficiente, a vós e a dame Nicole.
De facto, fora para casa do almotacé e da sua mulher que a jovem fora transportada após o ferimento recebido por ocasião do duelo entre Philippe de Selongey e Campobasso. A jovem conhecera ali a melhor das hospitalidades e fora naquela casa que, um ano depois, vivera com Philippe aqueles três dias tão profundamente arreigados na sua memória. Enquanto isso, o almotacé abria a sua residência, uma das poucas que tinham ficado de pé, aos despojos do Temerário, cujo cadáver desfigurado e meio devorado pelos lobos fora encontrado nos caniços gelados do lago de Saint-Jean.
Sobretudo, não digais isso a Nicole! disse o almotacé. Naturalmente, levo-vos comigo! Não vos esqueçais do meu carregamento, sargento Gachet!
Certamente, certamente, messire Marqueiz! Será como desejais!
Um instante mais tarde, Fiora subia a rue Neuve pelo braço do seu antigo amigo seguida de Florent, que levava os cavalos pela brida. Talvez a jovem tivesse preferido passar despercebida numa cidade que desempenhara um papel tão grande na sua vida, mas aquele encontro pareceu-lhe mais do que bem-vindo, inesperado, quando soube que o duque Renato estava ausente e que tinha ido a Neufchâteau. A sua carta nunca teria chegado ao seu destinatário e teria, provavelmente, ficado indefinidamente na casa da guarda, a menos que o sargento Gachet, ingenuamente, a expulsasse.
A casa, próxima da igreja de Saint-Epvre que, ao contrário de muitas outras, não sofrera muito com a guerra, ofereceu a Fiora a imagem das suas recordações doces e amargas, sem que
1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.
ela pudesse dizer se as primeiras eram mais importantes do que as segundas. A jovem convalescera ali de uma ferida no ombro, mas também ali encontrara Léonarde, vinda contra ventos e marés para junto do seu ”cordeiro” Fora ali que vivera o seu radioso encontro com Philippe, mas também, infelizmente, a ruptura, a ruptura que não cessava de censurar a si própria como a maior falta da sua vida.
Dame Nicole acolheu-a com tanta naturalidade como se se tivessem separado há pouco. Aquela grande burguesa, fria e distante, abraçou-a como se a jovem fosse sua própria irmã e Fiora concluiu que era realmente bem-vinda. No entanto, quando a sua anfitriã abriu diante dela a porta do quarto de onde ela tinha saído, numa manhã de Janeiro, envolta num lençol como uma rainha do teatro, ela desatou a soluçar.
Confusa, Nicole Marqueiz passou-lhe um braço em redor dos ombros e quis abraçá-la:
Perdoai-me! murmurou ela. Eu dou-vos outro quarto...
Não... não, peço-vos! Não façais isso! disse Fiora, esforçando-se por reprimir as lágrimas. Isto passa já, é bom para mim recordar assim o passado, mesmo que seja um pouco cruel. De facto, é uma peregrinação ao passado que me traz hoje a Nancy
Não me ides dizer que também vindes em peregrinação ao túmulo do defunto duque Carlos?
Não de todo, mas também um pouco. Lembrais-vos do jovem Battista Colonna, o pajem que me impuseram como guarda?
E que gostava tanto de vós? Lembro-me perfeitamente, tanto mais que ele nunca mais saiu da nossa cidade, tendo entrado para o Priorado de Notre-Dame...
Sabeis se ele pronunciou os votos definitivos?
É difícil saber o que se passa num convento de beneditinos, mas, na ocorrência, não me parece. É verdade que os monges são menos numerosos do que antes da guerra, mas se esse rapaz tivesse recebido a investidura, deixaria de poder sair do priorado, Ora, ele vai rezar todas as manhãs à colegial com dois ou três companheiros, e vela no sentido de que os curiosos que vêm ao túmulo não causem qualquer dano à colegial. Os cónegos, que não gostam muito de fazer esse tipo de guarda, ficaram muito felizes por eles se terem oferecido. Se quiserdes vê-lo, ide a Saint-Georges ouvir a primeira missa. Encontrá-lo-eis de certeza.
No dia seguinte, com a cabeça envolta num véu escuro, Fiora foi à missa da madrugada. Antes de se ajoelhar diante do altar-mor, procurou com os olhos o túmulo ducal e viu-o onde Nicole lhe disse que estaria: uma grande laje gravada e ligeiramente sobrelevada diante da capela de São Sebastião. Alguns
círios, acesos, sem dúvida, pela piedade de antigos soldados, flanqueavam-no como uma guarda brilhante e, sobre o túmulo propriamente dito, ardia uma lâmpada de azeite. Não havia ali ninguém, mas quando, terminada a missa, Fiora se virou de novo naquela direcção, viu uma figura delgada, vestida de burel branco, ajoelhada diante do túmulo e rezando fervorosamente com o rosto entre as mãos. Pousado ao lado do jovem monge estava o frasco de azeite com o qual ele renovara a provisão de azeite da lâmpada.
Fiora aproximou-se sem fazer ruído. Aquele que rezava era maior do que a recordação que tinha do seu antigo pajem, mas Battista devia ter uns dezassete anos e ela não tinha a certeza se seria ele.
Baixando as mãos, ele inclinou-se para beijar a pedra e foi quando ele se endireitou que a jovem lhe pousou uma mão no ombro:
Battista! murmurou ela. Podemos falar por uns instantes?
Ele teve um sobressalto, como se tivesse sido picado por uma vespa e levantou-se tão depressa que prendeu os pés no hábito e quase caiu. Fiora, amparando-o, sentiu o seu coração apertar-se face àquele rosto jovem que ela conhecera tão alegre, tão aberto, também tão belo, mas que dois anos de penitência tinham sulcado, empalidecido, envelhecido. A voz também não era a mesma quando ele exclamou:
Donna Fiora!... Que fazeis aqui?
É a vós, meu amigo, que é preciso fazer essa pergunta. Que vos deu para vos enterrardes vivo aqui, em vez de regressardes a casa, em Roma, onde se encontra toda a vossa família?
Eu decidi dedicar a minha vida ao serviço de monsenhor Carlos e continuo a servi-lo, muito simplesmente.
Ele, onde está, já não precisa de vós.
Que sabeis vós? Aliás, não estou só: olhai para aquele túmulo, ali ao lado! É o de Jean de Rubempré, que foi governador de Nancy ao seu serviço e cujo corpo foi encontrado não muito longe do dele. A piedade do duque Renato, que é um verdadeiro cavaleiro, quis que ele ficasse rodeado pelos seus homens: os outros repousam no cemitério da cidade e alguns até estão no do nosso priorado.
Portanto, tenho razão. Uma sombra guardada por outras sombras, ao passo que em Roma...
Roma não passa de uma cloaca! lançou o jovem com uma violência súbita. E agora deixai-me, donna Fiora! Tenho de voltar para os meus deveres...
Mas...
A jovem não teve tempo de dizer mais nada: erguendo o hábito, Battista desatou a correr através da igreja e desapareceu como se o diabo lhe fosse no encalço. Estupefacta com aquela súbita reacção, Fiora ficou a ver aquela fuga desvairada, quase se lançou em sua perseguição, mas renunciou. A jovem ajoelhou-se por sua vez diante da laje e rezou pelo repouso daquele que tanto odiara, mas a cujo encanto, como tantos outros, se submetera, ao ponto de ter aceitado a sua amizade e chorado a sua morte com o coração vazio de qualquer rancor. Via-o tal como lhe aparecera pela última vez, na manhã do último combate: um cavaleiro dourado em cujo elmo assentava um leão erguido nas patas traseiras, desaparecendo lentamente na bruma gelada de Inverno e erguendo o braço num gesto de adeus. O denso nevoeiro não se rasgara para ele senão no momento de entrar nas trevas da morte...