Fiora perguntara muitas vezes a si mesma qual teria sido o futuro do duque Carlos se ele tivesse sobrevivido. Teria ele conseguido encontrar os meios para prosseguir as suas guerras incessantes com uma Borgonha exangue e uma Flandres exasperada?
Certamente que não, mas com os seus últimos recursos teria continuado a bater-se, prosseguindo os seus sonhos de hegemonia até que a morte o apanhasse e, com ele, os seus últimos fiéis cavaleiros. No fundo tudo estava bem assim e a grandeza trágica da sua morte devia satisfazê-lo. Mas não era justo que uma criança ficasse prisioneira daquele drama e da auréola fascinante conferida pelas lendas.
Fiora decidiu que ainda não tinha acabado com Battista. Saindo da igreja, dirigiu-se à praça de la Halle e, detendo um passante, perguntou-lhe o caminho do priorado de Notre-Dame. O homem contentou-se em indicar-lhe uma rua ao fundo da qual, de facto, se via uma capela cujo campanário fora reduzido a metade por uma bala de canhão.
A entrada do convento fazia-se pela abside da igreja e Fiora tocou a uma campainha que pendia de uma velha e rude porta couraçada e cravada de ferro como a entrada de uma prisão e com um postigo gradeado a meio. À figura gorda que apareceu, a jovem disse que implorava ao padre prior daquela santa casa o favor de uma curta entrevista. O postigo fechou-se e ela teve de esperar longos minutos antes que a porta se entreabrisse para lhe oferecer uma pequena passagem. Do outro lado, o irmão porteiro, tão amplo de corpo como de rosto, fez-lhe sinal para que o seguisse e, sem uma palavra, conduziu-a até uma pequena sala de tecto baixo, húmida e desprovida de qualquer móvel. Apenas um crucifixo de madeira negra indicava que não se encontravam numa cave. Toda a casa cheirava a salitre e a mofo, mas aquela divisão, à qual se ia dar descendo alguns degraus, tinha um aspecto miserável, que apertou o coração da jovem. O encantador Battista, prisioneiro daquele túmulo há mais de dois anos, pareceu-lhe um perfeito disparate! Era preciso ter amado muito o Temerário para se condenar a si próprio àquela lenta destruição!
Ao monge vestido de negro e branco bruscamente surgido sem que ela ouvisse os seus passos, ela expôs o seu pedido: desejava ter uma conversa, durante alguns instantes, com o jovem noviço que, no mundo exterior se chamara Battista Colonna:
Eu venho de Roma disse ela com aprumo e trago para ele uma mensagem da família.
A mentira viera-lhe aos lábios muito naturalmente, pela simples razão de que estava pronta a empregar todas as armas para tirar aquela criança de um universo sem esperança, para o qual não podia ter sido criada. Aliás, seria uma mentira? Antónia, que lha entregara, era realmente prima de Battista e pelo amor que lhe votava era-lhe ainda mais chegada...
Não me podeis confiar essa mensagem? perguntou o prior, fixando a visitante com uma insistência que esta achou desagradável.
Não se trata de uma carta, antes de uma mensagem verbal que deixaria de ter o seu significado se passasse pela vossa voz, Reverência. Perdoai-me a franqueza.
Mas o religioso não tencionava render-se facilmente.
Uma família pode ser uma coisa muito vasta. Suponho que, na ocorrência, se trata de um único dos seus membros. Dir-me-eis, ao menos, quem é? Compreendeis, minha filha, eu sou o contabilista da alma desse rapaz e não desejo ver perturbada uma paz que ele conseguiu com alguma dificuldade apressou-se ele a acrescentar ao ver as sobrancelhas franzidas da jovem.
Temeis que essa paz seja frágil? Se, porém, é real, profunda, nenhum sinal vindo do mundo dos vivos a poderá ferir. Posso dizer-vos o seguinte: ninguém, entre os Colonna e digo-vos que a família é muito grande ninguém, dizia eu, compreende por que razão uma criança de quinze anos preferiu ficar aqui, longe dos seus...
Nós sabemos isso há muito tempo, Madame. O príncipe Colonna veio aqui em pessoa e Battista recusou-se a vê-lo... Mas suponho que sabeis isso?
Não foi ele que me mandou.
Então, quem foi?
Com vossa licença, Reverência, di-lo-ei a Battista disse Fiora, que começava a perder a paciência. Quero falar-lhe e não lhe servirá de nada esconder-se por trás destas paredes, ou
Ver Fiora e o Papa Sisto IV
fugir, como fez há pouco. Ou, então, é porque já não é aquele que conheci e porque perdeu toda a coragem e, sobretudo, aquela que consiste em olhar a verdade de frente!
A imponente silhueta do prior pareceu desdobrar-se para deixar ver uma sombra branca: o próprio Battista, que devia ter entrado sem que ela se apercebesse e sem fazer mais barulho do que o seu superior.
É verdade que já não sou o mesmo, donna Fiora, mas não aceitarei nunca que me acusem de falta de coragem...
A despeito da profunda tristeza que reinava naquela pequena sala, Fiora reteve um sorriso. Se conservara o hábito são de escutar às portas, o jovem Colonna tinha mudado muito menos do que imaginava e talvez ainda houvesse esperança.
Por que fugistes de mim, há pouco, na igreja? Nós fomos amigos, há pouco tempo...
Devíeis dizer em tempos. Parece-me que foi há muito tempo...
Dois anos, Battista. Dois anos contam pouco na vida humana.
A jovem calou-se, fixando o prior com uma insistência que lhe fez surgir nas faces cavadas duas manchas vermelhas. Compreendendo que ela não diria mais nada na sua presença, ele decidiu, por fim, retirar-se:
Estarei na capela, meu filho murmurou ele. Eu vou lá rezar para que o Senhor afaste de vós as armadilhas do mundo.
Agradeço-vos, meu pai, mas espero ter as forças necessárias, com a ajuda de Deus, para as combater sozinho!
Que coisa tão bonita! observou Fiora, azeda. Não me parece que vos tenha, alguma vez, estendido uma armadilha?
Eu sei, donna Fiora, e peço-vos perdão se vos magoei... mas também nunca vos ouvi mentir.
Mentir, eu? E quando é que vos menti?
Mas... ainda agora. Não dissestes que vínheis de Roma? Vós, em Roma? E para fazer o quê?
Tereis que pedir desculpa novamente, Battista! Eu não venho directamente de Roma, confesso, mas estive lá, aliás involuntariamente, durante alguns meses. Senão, como poderia ter conhecido a vossa prima Antónia?
Um súbito acesso de sangue devolveu por um instante, ao jovem noviço, o bom aspecto de antigamente e os seus olhos negros puseram-se a brilhar, mas foi só por um instante...
Antónia! suspirou ele. Ela ainda se lembra de mim?
Mais do que supondes.
Eis uma afirmação difícil de acreditar. Soube que a iam casar.
As vossas notícias são muito antigas. Antónia usa agora o nome de irmã Serafina no convento de Santo Sisto, onde nos tornámos amigas.
Religiosa? Antónia? Mas isso é extraordinário!
Quase tanto como eu ver-vos aqui com esse burel monástico. Acrescento que, se ela entrou para o convento, não foi por sua própria vontade. O Papa queria forçá-la a casar-se com um dos seus sobrinhos, Leonardo, o menos bem sucedido do bando. Ela preferiu fazer-se freira. Apesar de o seu pai ter tido, para apaziguar a cólera papal, de ceder a maior parte do seu dote. Acrescento que ela não tomou o véu nesse dia... e que depende de vós ela fazê-lo algum dia. Foi a seu pedido que vim aqui.
Afastando-se de Fiora, Battista foi encostar-se à parede de onde pendia o grande crucifixo, como que para se pôr sob a sua protecção. O jovem ficara ainda mais pálido e a jovem sentiu-se invadida por uma piedade infinita.
Vós escrevíeis-lhe! disse ela docemente. Por que parastes?
Deixei de escrever quando soube que ela se ia casar. Eu amava-a... muito e preferi romper com todos os laços entre nós. Parecia-me que seria mais fácil e, realmente, assim aconteceu, com o tempo. Junto de monsenhor Carlos as coisas eram diferentes, com ele tudo era possível, sobretudo os sonhos de cavalaria. Gostava daquela vida, sentia-me quase feliz. E depois aparecestes vós e junto de vós vivi os dias mais doces da minha vida...