A jovem aceitou com um sorriso e os dois, seguidos de Florent, dirigiram-se para a capela. As velas já estavam acesas, a lâmpada cintilava com um brilho novo e um outro futuro monge estava no lugar exacto onde Fiora vira, na véspera, Battista. Mas aquele parecia muito maior e os ombros que vestiam o tecido branco grosseiro eram largos e vigorosos. Uns cabelos castanhos, curtos, cobriam uma cabeça cujo porte arrogante fez, sem que ela compreendesse porquê, bater mais depressa o seu coração. Em seguida, tudo se precipitou.
Largando-lhe o braço, Battista aproximou-se do seu antigo companheiro e, sem dizer nada, tocou-lhe no ombro. Então, lentamente, o futuro monge virou-se e a mão trémula de Fiora procurou, às apalpadelas, o apoio de um pilar. Aquele monge era Philippe...
Direito, na sua frente, com aquele hábito que o fazia ainda maior e sublinhava o desenho arrogante do seu rosto cujo tom moreno era demasiado profundo para que a sombra do mosteiro o conseguisse empalidecer, ele olhava para ela, mas nos olhos cor de avelã que as chamas das velas tornavam dourados Fiora não viu qualquer sinal da paixão de outrora. E quando, esquecendo o local em que estava, levada pelo amor, ela quis lançar-se nos seus braços, ele estendeu um braço para a manter à distância:
Não Fiora. Não te aproximes de mim.
Ela ficou como que fulminada por um raio, com a impressão de que o seu coração se despedaçava e que a sua vida se desmoronava.
Mas porquê?... porquê? perguntou ela com a voz já entrecortada pelas lágrimas.
Ele encolheu os ombros e meteu calmamente as mãos nas amplas mangas do hábito:
É evidente, parece-me. Nem este local, nem o hábito que eu visto permitem essas efusões.
Nem sempre disseste isso. Já te esqueceste da igreja de Santa Trinita? Preocupaste-te pouco com a santidade do local, na manhã em que me ensinaste o que é um beijo.
Não, não me esqueci, mas não tinha este hábito e a igreja não passava de uma igreja: esta capela está santificada pela presença daquele que aqui repousa...
O Temerário há-de estar sempre entre nós até ao fim dos tempos? murmurou Fiora com amargura. Ele está morto, Philippe, e o culto irrisório que tu te obstinas em prestar-lhe não fará com que ele ressuscite.
Para mim, está mais vivo do que vós todos. Só respiro livremente quando estou junto dele!
Que loucura! Battista, esse, compreendeu que tinha obrigações para com outros...
Virando-se, a jovem procurou o jovem para o chamar como testemunha, mas ele e Florent tinham-se afastado, compreendendo que a sua presença era inoportuna.
Battista, agora, sabe que precisam dele...
Eu eu, não preciso de ti?
Não.
E o teu filho? Porque tu tens um filho, Philippe. Achas que ele não precisa do pai?
Um clarão brilhou, pela primeira vez, nos olhos frios de Selongey e a sua voz dura suavizou-se:
Na prisão, em Dijon, na véspera daquela que devia ser a minha execução, soube que esperavas um filho, mas ignorava que fosse um rapaz. Fico muito feliz... mas, no sítio onde está, não precisa de mim. Não me devias ter falado dele, não sinto qualquer prazer em ser o pai de um futuro mercador florentino.
Um futuro mercador florentino? Mas, onde pensas tu que ele está?
Em Florença, claro. Para onde o levaste o ano passado.
Eu? Eu levei o meu pequeno Philippe para a Toscânia? Sobre esse túmulo que tu pareces venerar, juro que o nosso filho está neste momento na casa de la Rabaudière, perto de Tours, onde a minha velha Léonarde, a minha antiga escrava Khatoun e um casal muito nosso amigo velam por ele.
O sorriso irónico de outrora esticou para a direita a boca desdenhosa de Philippe:
Em Tours! Pouca diferença faz! Enganas-te, Fiora, quando dizes que monsenhor Carlos está entre nós. Aquele que está verdadeiramente entre nós é o Rei de França. Sabes perfeitamente que nunca aceitarei servi-lo, mas educas o teu filho na corte dele.
Eu educo o meu filho em minha casa, na casa que me foi dada...
... como agradecimento pelos teus bons e leais serviços na cama de Campobasso!
Meu Deus! Nunca esquecerás essa história horrível?
Avançando um passo na direcção do túmulo, Fiora deixou-se cair de joelhos perto da lâmpada de bronze:
O Rei transferiu para mim a estima que tinha pelo meu pai. Ele deu-me aquela casa porque sabia que eu não tinha mais nada.
Tinhas Selongey. Era lá que devias estar quando nasceu o meu filho. Mas tu não querias viver longe da agitação e da vida brilhante a que estavas acostumada...
Se eu tivesse aceitado seguir-te, talvez fosse, a esta hora, uma errante miserável. Esqueces que foste condenado à morte porque só sonhavas em recomeçar a guerra, em te dedicares ao serviço da tua bem-amada duquesa Maria. Eu não contava, podias arrumar-me em Selongey como se fosse bagagem incómoda... Dito isto, estou profundamente arrependida por ter provocado entre nós esta ruptura. Porque... Deus é testemunha e vós também, monsenhor, que dormis sob esta grande laje... porque te amo, nunca amei ninguém senão tu, Philippe. Há meses que te procuro!
Há meses? E por que não anos? Creio que, como boa florentina, exageras um pouco. Não me procuravas em Setembro último, quando estavas em Florença, junto do Médicis, o teu amante, para onde levaste o meu filho e todo o teu pessoal.
A indignação e o estupor fizeram com que Fiora se levantasse.
Eu estava em Florença em Setembro último? Mas, quem é que te disse uma coisa dessas?
Um homem que encontrei a dois passos da tua casa... a que chamam a Casa das Pervincas. É isso?
Tu foste... a minha casa em Setembro? É impossível.
A sério? Então, ouve. Quando fugi do castelo de Pierre-Scize, onde o teu Rei me fechou...
Graças à cumplicidade da filha do carcereiro, eu sei...
Dir-se-ia que sabes muitas coisas?
Mais do que pensas. O que eu quero saber é o que fizeste quando saíste do convento de Val-de-Bénédiction, onde foste tratado e onde me disseram que tinhas perdido a memória.
Tu foste lá?
Escoltada por Douglas Mortimer. Deves lembrar-te dele. O dom abade disse-nos o pouco que sabia de ti... salvo que lhe mentiste. Tu nunca perdeste a memória, pois não?
Não, mas nem todos os monges são dignos de confiança e era a única conduta possível para um prisioneiro evadido de uma prisão real. Que sabes tu mais?
Que por ocasião da festa das ladainhas te aproveitaste da passagem de alguns peregrinos a caminho de Compostela para abandonar o convento.
A jovem calou-se. O olhar de Philippe, passando sobre ela, fixou-se em algo que ela não via. Ela seguiu a direcção e viu um grupo de homens, de gorro na mão, que se dirigiam ao túmulo.
Vem! murmurou Philippe. Afastemo-nos! O resto da igreja está vazia a esta hora...
Respondendo com um sinal de cabeça à saudação respeitosa dos fiéis, ele precedeu a jovem no deambulatório e depois esperou que ela se lhe juntasse. Então, começaram a caminhar muito lentamente, lado-a-lado e Philippe contou como se juntara aos errantes de Deus que iam a caminho da longínqua Galiza.
Fui com eles até Toulouse. Era a minha única hipótese de sobrevivência, porque não tinha um vintém e vivi da caridade graças a eles. Pensei em acompanhá-los até ao fim, mas qualquer coisa mais forte me prendia a esta terra onde pensava que vivias. Tinha sofrido tanto que até esqueci o ódio que sentia por Luís XI. O que eu queria era encontrar-te...
Philippe!
Cala-te! Deixa-me acabar! Em Toulouse, fiz de conta que tinha um problema numa perna e deixei seguir os meus companheiros. Fiquei no hospital de Saint-Jacques, ganhando o meu sustento em troca de pequenos serviços. Esperei pela passagem de outros peregrinos de regresso ao norte, de preferência a Tours. Quando eles apareceram, regressei com eles e foi assim que cheguei, finalmente, ao... covil do Aranhiço Universal! grunhiu ele num tom rancoroso que arrepiou Fiora.