O hábito que usas não te incita ao perdão das injúrias e à caridade? reprovou-o ela docemente.
Sem dúvida!... Mas não sei bem se a graça de Deus me tocou verdadeiramente disse ele com um sorriso amargo. No entanto, aproximei-me dos arqueiros de guarda. Queria falar àquele escocês de que tu falaste há pouco e do qual guardava uma recordação de companheiro valente, mas disseram-me que estava ausente. Foi então que se aproximou de mim um homem e me perguntou o que eu queria. Eu disse-lhe e ele propôs-me mostrar-me a tua casa... mas, em caminho, acrescentou que tu já não estavas lá, que a tinhas deixado vários meses antes, sem esperança, para regressar a Florença com o teu filho e os teus servidores. E como eu tivesse ficado espantado por tu quereres regressar a uma cidade que te tinha tratado tão mal, ele desatou a rir: ”Não há nada que uma mulher tão bela como aquela donna Fiora não consiga obter de um homem e Lourenço de Médícis é todo-poderoso. Há muito tempo que é amante dela...”Meu Deus! murmurou Fiora, espantada. Mas, quem te disse uma coisa dessas?
Um homem que, aparentemente, te conhece bem, um conselheiro do Rei e também seu barbeiro, parece... O que não me espanta num sire tão triste como aquele!
Olivier lê Daim! Aquele miserável, que me odeia e que nos tentou matar, a mim e a Léonarde, ousou dizer-te isso? E tu acreditaste nele?
Quase o estrangulei, mas ele jurou por todos os santos do Paraíso que dizia a verdade e como acrescentou que a casa em questão lhe pertencia doravante e que, se eu o desejasse, me ofereceria hospitalidade, deixei-o e fugi a correr. Se tivesse ficado, creio que teria acabado por matá-lo e por pegar fogo àquela maldita casa...
Por que não o fizeste? Terias evitado a ambos muitos sofrimentos. Se te tivesses aproximado de la Rabaudière, terias visto as janelas abertas e Léonarde no jardim com o nosso filho... Juro-te que estava lá! Aliás, se não acreditas em mim, vem comigo: o servidor que me acompanha poderá responder às tuas perguntas sem que eu abra a boca! Vem, suplico-te!
Não... Não me rebaixarei a interrogar um servidor. Prefiro acreditar em ti!
Fiora olhou com desespero para aquele rosto fechado, para aquele perfil imóvel que se destacava com a nitidez de um medalhão nos azuis e púrpuras de um vitral. O seu coração batia com toda a força, a jovem sentia que, em vez de o aproximar dela, cada palavra que trocavam cavava um pouco mais o fosso que os separava. Para dar a si própria tempo para reflectir, Fiora murmurou em voz surda:
Que fizeste depois?
Peguei no meu bordão e pus-me de novo a caminho. Já não tinha vontade de viver. O rio tentava-me, estava mesmo ali, mas um cavaleiro, mesmo reduzido à miséria, não tem o direito de se matar. Podia servir e lembrei-me, então, de um parente da minha mãe cujo castelo se situava perto de Vendôme. Se ainda fosse vivo, talvez me desse aquilo de que tinha tanta necessidade: um cavalo, uma espada e os meios de atingir a Flandres, para retomar o combate pela duquesa Maria...
Suponho que o teu desejo foi satisfeito disse Fiora porque Mme. de Schulembourg viu-te no Natal em Bruges. Eu estive com ela e ela contou-me o que se passou. Penso que amavas Madame Maria há muito tempo...
Foi a vez de Philippe se espantar.
Eu? Eu amo a duquesa há muito tempo? Ah, é verdade acrescentou ele com um sorriso desdenhoso eu estava de joelhos perante ela quando aquele alemão rústico, com quem ela casou entrou, mas não me estava a declarar.
A sério?
Pela minha honra! Suplicava-lhe que retomasse o combate pela nossa Borgonha invadida pela gente do Rei. Suplicava-lhe que me confiasse um grupo de soldados sólido e armas. Desse modo, teria sublevado a região de Selongey e, sem dúvida, as outras ter-se-iam seguido...
Enquanto explicava o seu sonho, a luz invadia de novo os seus olhos, a luz que o amor da sua mulher já não lhe suscitava. Uma constatação que, acordando nela o ciúme, suscitou a cólera de Fiora:
Uma loucura! Nunca o terias conseguido. Os irmãos de Vaudrey, que defendiam o Franco-Condado há tanto tempo, foram, finalmente, vencidos. Tu também o terias sido e dessa vez não terias escapado ao cadafalso.
E depois? grunhiu ele. Não imaginas a que ponto lamento não estar morto. De qualquer maneira, a duquesa não quis ouvir as minhas súplicas porque não pensa, não vê, não respira senão através do marido, aquele efeminado, aquele alemão a quem só interessam a Flandres e Artois.
Isso não tem lógica disse Fiora friamente. Se tivesses conseguido, ter-te-ias batido por aquele alemão. Seria a ele que terias entregado a Borgonha. O grande bastardo não suportou ver a águia negra a esmagar a flor-de-lis. Os teus grandes príncipes, até aquele que dorme aqui, eram Valois, assim como o Rei Luís, e até a mãe da tua duquesa Maria era francesa. Não conseguirás escrever a História à tua maneira, Philippe de Selongey. Agora tens de pensar no teu filho, que está a começar a vida! Como Philippe guardasse silêncio, Fiora, sentindo que tocara numa corda sensível, quis forçar a vantagem que conseguira:
Achas que o próprio irmão do Temerário e seu mais fiel capitão, que homens como Philippe de Crèvecoeur, como os Croy e tantos outros se aliavam ao Rei Luís se não vissem nele um soberano digno de ser servido? Eu não te peço tanto, mas regressa para junto de nós, Philippe! Eu não te obrigarei a viver em Touraine. Iremos para Selongey e viveremos lá os dias que nos restam!
Tinham dado a volta à colegial e tinham regressado ao túmulo, junto do qual não havia ninguém. Maquinalmente, Philippe reacendeu um círio que se tinha apagado...
Eu sinto-me bem perto dele, Fiora! Quando saí de Bruges, agoniado com aquele casal preocupado com a vida familiar e que só pensava na caça e em festas, quis vir rezar a este túmulo para pedir a monsenhor Carlos que me indicasse o caminho. Tinha sede de grandeza, de sacrifício. E vi Battista com o hábito de noviço. Compreendi que era essa a resposta que esperava. Fiquei...
Tu não me amas! Nunca me amaste! exclamou Fiora com as lágrimas a correrem-lhe de novo pelas faces. Se me amasses...
Então, pela primeira vez após longos minutos, ele olhou para ela e Fiora, meio estrangulada de emoção, compreendeu que se enganava, que o amor não morrera. Lentamente, Philippe estendeu sobre a laje a sua grande mão nervosa:
Sobre o túmulo daquele que aqui dorme e pela fidelidade que lhe tinha te juro que nunca amei ninguém senão tu!
Então vem comigo, suplico-te! Regressa comigo! Eu ia para Selongey. Vamos juntos e depois mandamos buscar o nosso filho! Eu não volto a la Rabaudière, mas vem comigo, suplico-te! Não nos condenes a ambos! Ainda podemos ser felizes...
Achas?
Tenho a certeza, meu amor...
Seguiu-se, entre os dois, um daqueles silêncios mais eloquentes do que quaisquer palavras, porque saram as feridas e fazem nascer a esperança. Fiora não ousava mexer-se, esperando um gesto, um sorriso do seu marido.
Então, é a tua vez de jurar ordenou Philippe. Vais jurar sobre este mesmo túmulo e perante Deus que nunca foste amante de Lourenço de Médicis!
Aquelas palavras atingiram de tal maneira a jovem que ela vacilou, ao mesmo tempo que o sangue lhe fugia do coração. A luz que acabava de se acender, apagara-se. A esperança desvanecia-se... A tentação de um juramento falso nem sequer lhe passou pela cabeça: ela sabia que o segredo do nascimento de Lorenza podia escapar-lhe e que até os rumores vindos da longínqua Florença podiam chegar, um dia, aos ouvidos do marido.
Então? impacientou-se Philippe.
Ela não respondeu e desviou o olhar para não ver aqueles olhos que, agora, chamejavam ao mesmo tempo de cólera e desgosto.
Eu... eu não posso! Mas...
Não quero nenhum ”mas”! Adeus, Fiora!