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O Rei não olhou para ela. O soberano olhava para o fogo e o seu terrível perfil de nariz pontiagudo queixo pesado obstinado e boca desdenhosa recortava-se no fundo flamejante que lhe fazia sobressair as maçãs ossudas do rosto e as pálpebras pesadas, enrugadas como as das tartarugas, por entre as quais se filtrava o brilho sombrio do olhar. Estendia para o fogo as mãos nervosas, miraculosamente poupadas pela idade e, de tempos a tempos, esfregava-as uma na outra.

Como ele continuasse a não virar o olhar para ela, Fiora deu alguns passos abafados pela espessura dos tapetes, nos quais estavam deitados os cães. Todos eles tinham virado as cabeças; farejando o ar modificado por aquela presença estranha, esperando, talvez, uma ordem que não surgiu, ao mesmo tempo que Fiora esperava uma palavra que, também ela, não surgiu.

Sabendo como a sua cólera podia ser terrível, ela não ousou romper aquele silêncio sufocante. A jovem saudou profundamente e esperou, com um joelho em terra, que lhe fosse permitido levantar-se. O Rei continuava calado. Então, meio estrangulada pela angústia, ela murmurou, a despeito da tempestade que lhe podia cair sobre a cabeça:

Sire... Ignoro por que razão o Rei desvia de mim o olhar e que falta terei cometido para incorrer na sua cólera, mas suplico-lhe humildemente que me diga... pelo menos, o que é feito do meu filho?

De novo o silêncio assustador. A jovem sentiu um nó na garganta e as lágrimas, que se esforçou por reter, subirem-lhe aos olhos. Então, bruscamente, Luís XI virou a cabeça e ela recebeu em pleno rosto o olhar agudo, cintilante, de uma cólera que apenas a vontade reprimia:

O vosso filho? grunhiu o Rei com um desprezo que esbofeteou a jovem. Já é tempo de vos preocupardes com ele! Desde que ele nasceu, há quase dois anos, quantos dias passastes junto dele?

Muito poucos, mas o Rei sabe...

Absolutamente nada! E levantai-vos! Pareceis-vos demasiado com a condenada que ainda não sois!

E devo sê-lo? Em que é que ofendi o Rei?

Ele desviou de novo o olhar daquela delgada silhueta negra, demasiado graciosa, talvez, e daqueles grandes olhos cinzentos, demasiado brilhantes para não estarem molhados.

Ofender? A palavra é fraca, Madame! Vós insultastes-me, traístes-me tanto quanto o pode ser um soberano, tramastes a minha morte!

Eu?

O grito fora tão espontâneo que o Rei estremeceu. Um tique nervoso repuxou-lhe a boca e agitou-lhe as narinas sensíveis, de homem nervoso.

Sim, vós! Vós, que eu acolhi quando Florença vos rejeitava, vós, que eu recebi nos meus domínios, quis na minha vizinhança e a quem, Deus me perdoe, concedi alguma amizade! Como se um homem são de espírito pudesse conceder uma coisa parecida com amizade a uma mulher!

O soberano escarrara a palavra com tanto desprezo que Fiora que sentiu que um princípio de cólera lhe secava as lágrimas.

Sire! O ventre que transportou o Rei não era o de uma mulher?

O olhar que ele virou para ela era pesado de rancor e talvez, também, de desgosto:

A Senhora Rainha, minha mãe, era uma santa e nobre mulher que não conheceu a felicidade atrás da qual vós todas correis por uma simples razão: era feia. Mas a minha avó, Ysabeau la Bavaroise, não era outra coisa senão o que vós chamais, na vossa língua italiana unagrandputana e, não contente com isso, vendeu, no seu tempo, a França à Inglaterra! E eu, que não queria mulheres no meu séquito, agi como um louco, permitindo-vos que entrásseis nele. Foi por isso que vos tirei la Rabaudière...

Mas o meu filho, o meu filho?

Será educado como convém ao nome que tem. Confiá-lo-ei ao grande bastardo Antoine, que saberá fazer dele um homem...

Respeito profundamente monsenhor Antoine, mas nego-lhe o direito, comigo viva, de educar o meu filho!

- Convosco viva? Tendes a certeza de que o sereis ainda por muito tempo?

Ah!... O Rei está a pensar... mandar matar-me?

Vós tramastes a minha morte, Madame!

Nunca! Juro pela minha alma que nunca vos desejei, sequer, a morte. Seria preciso que fosse louca!

Ou demasiado hábil! Vós não nascestes em Florença, Madame, mas tornastes-vos florentina e parece que a intriga não tem segredo para vós. Negais ter escrito, o Verão passado, uma carta que tereis confiado ao núncio do Papa em Avinhão?

Ao cardeal della Rovere? Sem dúvida, Sire e não tenho razão nenhuma para o negar.

A quem se destinava essa carta?

A uma amiga querida, que me permitiu sair de Roma viva, chegar a Florença e, de certa maneira, salvar a vida a monsenhor Lourenço, entregando-lhe a espada de que tinha grande necessidade: a madonna Catarina Sforza, condessa Riario...

Que tínheis de tão urgente para lhe transmitir?

O meu reconhecimento tardio. Aliás, foi a pedido do cardeal que escrevi essa carta.

Muito verosímil disse o Rei, encolhendo os ombros. Por que vos teria della Rovere pedido isso?

É muito simples. Ele tem pela prima uma profunda afeição e parece que esta sofreu muito por causa da ajuda que me prestou. O cardeal desejava que, como prova da minha profunda afeição por donna Catarina, lhe prometesse intervir junto do Rei para que ele fizesse cessar a guerra entre Roma e Florença...

E de uma maneira muito simples: assassinando o ”velho diabo!” porque é assim que a vossa pena me trata o que privará Florença de uma ajuda preciosa em ouro e canhões...

Eu nunca escrevi nada de semelhante! gritou Fiora fora de si. E por que razão teria eu imaginado esse horror?

Na esperança de que o Papa vos desse mais do que o que o pobre Beltrami vos fez perder! Aqui tendes!

De uma das suas grandes mangas, ele tirou um grande papel desdobrado que devia ter viajado muito, porque os vincos estavam sujos e o selo de cera quebrado. O soberano entregou-o a Fiora:

Esta carta é vossa? É a vossa letra, não é? E também é o vosso selo: cera verde com essas três pervincas que escolhestes como emblema pessoal?

A carta, com efeito, parecia-se, até ao mais ínfimo pormenor, com a que entregara a Giuliano della Rovere. Era, de facto, a sua letra, o seu pequeno selo verde, mas o texto estava longe de ser o mesmo e Fiora, ao lê-lo, sentiu-se empalidecer, porque era a sua própria perda que tinha nas mãos. A jovem leu e releu várias vezes as terríveis frases para se convencer de que os seus olhos não estavam a traí-la e que não estava a enlouquecer:

”... e posso assegurar a Vossa Santidade e a Vossa Excelência a minha dedicação total, com a qual podeis contar absolutamente. Dentro de alguns meses porque preciso de falar com alguns elementos rebeldes à ocupação francesa das nossas terras da Borgonha farei com que o velho diabo, que merece as chamas do inferno, deixe de prejudicar a alta reputação do Mui Santo Padre. Então, a França, nas mãos de uma criança, deixará de importunar os príncipes de quem esse Rei miserável não passa de uma grotesca cópia...

Seguia-se, evidentemente, um pedido de recompensa por um tão grande serviço. Fiora ergueu para o Rei um olhar espantado mas límpido, e entregou-lhe a carta com uma mão que não tremia.

O Rei crê-me capaz de escrever uma tal infâmia? Eu, que odeio o Papa e o seu séquito, com excepção de donna Catarina?

Vós sois mulher, e uma mulher muito bela. As mulheres da vossa espécie são capazes de tudo para obter a fortuna que lhes permita cuidar dessa beleza entretanto tão ilusória e assegurar-lhe uma moldura digna.

Eu sou rica, não preciso das benesses do Papa. Monsenhor Lourenço devolveu-me a quase totalidade da minha fortuna. E ia pactuar com aqueles que querem a sua perda?