A guerra entre o Papa e Florença está longe do fim. Escaramuça-se muito, sem dúvida, mas a cidade da flor-de-lis vermelha perde forças, ao passo que Roma as adquire. Aliás, a balança não estava equilibrada à partida e eu receio muito...
Então exclamou Fiora, levada por uma cólera brutal que esperais para os ajudar? Enviai tropas, enviai mais ouro ainda, mas não deixeis perecer Florença!
Um leve sorriso esticou os lábios espessos de Luís XI, ao mesmo tempo que as suas mãos aplaudiam vigorosamente:
Bravo! Que comediante me saístes, donna Fiora! Na verdade, quase me convenceis. É tentador.
Aquele desdém desarmou Fiora, mais do que o teria feito uma cólera violenta. A jovem deixou-se cair de joelhos:
Então matai-me, Sire!Matai-me agora mesmo... mas não me insulteis! Pelo meu filho vos juro que essa carta não é minha!
Esqueceis que já me escrevestes? A comparação é fácil...
É uma falsificação, não? O Papa e a corja que o rodeia são capazes de tudo e os copistas não faltam... Com... com que palavras, em que língua posso jurar-vos que nunca escrevi essa... esse lixo?
Subitamente, veio-lhe uma ideia surgida das profundezas da sua memória:
Sire! Estava uma pessoa junto de mim quando me pediram que escrevesse essa carta...
Quem?
Dame Léonarde, que me criou, sem dúvida, mas que não vejo há várias semanas e cujo paradeiro desconheço. Confesso, tive bastante dificuldade para redigir essa epístola, não por causa dos sentimentos de amizade e reconhecimento que menciono nela, mas porque sabia que incitar-vos a pôr fim à guerra estava para além dos meus poderes. Como me teríeis recebido se eu tentasse intervir na vossa política?
Muito mal. Ter-vos-ia dito que vos metêsseis no que vos diz respeito... Dame Léonarde, dizeis vós?
Sim, Sire!
O Rei bateu as palmas, o que acordou os cães e fez aparecer o criado que introduzira Fiora. Fazendo-o aproximar-se com um gesto imperioso, o soberano murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. O homem fez sinal de que compreendera e saiu tão depressa como tinha entrado. O Rei parecia ter-se acalmado um pouco, mas mordia o lábio inferior enquanto olhava para a jovem sempre ajoelhada entre um épagneul louro e uma cadela galga branca, que formavam com ela uma figura heráldica de uma beleza surpreendente:
Em todo o caso disse ele ao cabo de um instante já vos aconteceu enviar-me, pelo menos, uma carta mentirosa. Lembrais-vos da que escrevestes antes de partir para Paris? Que me enforquem se não é um chorrilho de mentiras!
Fiora baixou a cabeça sem responder, lembrando-se das palavras de Olivier lê Daim. Se o barbeiro sabia que ela dera à luz uma rapariga, também o Rei sabia.
Confesso, Sire. Menti.
Ah! disse ele com ar de triunfo. Admitis? Então, dizei-me onde estivestes durante esse longo Inverno!
Fiora levantou a cabeça: não ia renegar as suas entranhas, mesmo que isso lhe custasse a vida.
Primeiro em Paris, e nisso não menti. Depois, em Suresnes, numa pequena casa pertencente ao meu velho amigo Agnolo Nardi, o irmão de leite do meu pai... Dei lá à luz uma filha, que entreguei a Agnolo e à sua mulher.
Ah! Finalmente! exclamou o Rei, que saltou da sua cadeira como se impulsionado por uma mola e se pôs a andar de um lado para o outro diante da chaminé. Uma filha! E de quem é essa criança? Não vos deis ao cuidado de mo dizer, fá-lo-ei por vós: é do vosso marido, Philippe de Selongey que, a despeito do que me dizíeis, foi ter convosco secretamente. E é nisso que essa maldita carta não mente! Tínheis razão quando faláveis em ”elementos rebeldes”, por outras palavras no vosso marido, mas, evidentemente, era difícil anunciar-me que estáveis grávida, quando eu não sabia onde se encontrava esse demónio do Selongey. Foi por isso que vos fostes esconder... Como vedes, sei tudo! Atordoada, Fiora deixou-se cair sentada nos calcanhares, com desprezo por todo o protocolo:
Que estupidez é essa? exclamou ela com mais sinceridade do que cortesia. Eu ter-me-ia dado ao trabalho de esconder o nascimento de uma filha do meu marido? De uma filha a quem dei o nome de Lorenza Maria?
Lorenza?
É claro. Os que me são próximos poderão dizer-vo-lo: não só essa criança não é fruto da minha união com um rebelde, como é desse rebelde que eu quero ardentemente escondê-la... porque é fruto dos meus amores com Lourenço de Médicis. Escondi-vos que fui amante dele?
De facto não, mas...
A esta hora, o meu marido não ignora nada das minhas relações com Lourenço e, como o perdi para sempre, não tenho razões para me privar do amor da minha filha. É minha intenção reavê-la.
Portanto, é verdade que encontrastes o conde de Selongey? Onde? Quando?
Mais ou menos há três semanas, em Nancy, no priorado de Notre-Dame...
Santo Deus! Então, é lá que ele está escondido?
Fiora pôs-se de pé num salto, impulsionada por uma manifestação de orgulho.
Se o disse ao Rei, é porque ele não está escondido! Ele escolheu viver lá para poder, todos os dias, rezar no túmulo de monsenhor Carlos duque de Borgonha e único senhor que ele alguma vez aceitou servir. Um dia, talvez não muito longínquo, pronunciará lá os votos perpétuos.
Lentamente, Luís XI regressou à sua cadeira e ficou meio deitado, meio sentado nela, cobrindo com as duas mãos os dois leões esculpidos nos braços de madeira de carvalho. O soberano parecia mergulhado em profunda meditação. Depois:
Ele quer fazer-se monge, ele? Portanto, já não vos ama? acrescentou ele com uma ironia cruel que feriu a jovem.
Eu podia tê-lo trazido comigo suspirou ela. Mas... à custa de um perjúrio.
Qual?
Ele pediu-me que jurasse... perante Deus, que nunca pertenci a Lourenço. Não pude...
Gelada pela recordação daquele instante cruel, Fiora nem sequer virou a cabeça quando a porta se abriu de novo com um ligeiro ranger, mas logo se ouviu um grito:
Meu cordeiro!
No instante seguinte, Fiora estava nos braços de Léonarde, onde se abrigou com uma maravilhosa sensação de libertação e apaziguamento:
Léonarde! Minha Léonarde!... Oh meu Deus!
Ordeno-vos que vos separeis! ordenou Luís XI em voz alta. Mulher, eu não vos fiz vir aqui para assistir a uma cena de ternura, antes para que respondais às minhas perguntas!
E eu quero fazer-vos uma, Sire exclamou Léonarde. Que lhe fizestes, para que esteja neste estado?
Siderado, Luís XI ficou sem voz perante aquela velha solteirona que ousava interrogá-lo no tom que um oficial da guarda teria utilizado para com um ladrão apanhado no meio da rua.
Por Deus, comadre, esqueceis quem sou?
Não... e sois um grande Rei. Mas ela, esta pobre pequena, a quem a felicidade neste mundo parece ser recusada, representa mais para mim do que se fosse carne da minha carne! E agora fazei as perguntas que quiserdes... mas não nos separeis mais!
Como hei-de chegar à verdade? resmungou o Rei. Enfim! Tentemos!... Primeiro, que sabeis da criança nascida em Suresnes no princípio da Primavera?
O que é possível saber, Sire. Chama-se Lorenza. Isso diz tudo.
Seja, seja. Passemos a outra coisa! Tendes conhecimento de uma carta, escrita há cerca de um ano por madame de Selongey a donna Catarina Sforza e por ela confiada a Sua Eminência o cardeal-núncio...
A monsenhor della Rovere? Tenho! Essa carta deu muito trabalho a este pobre anjo...
Nesse caso, sois capaz de a reconhecer. Ei-la! Léonarde, obrigada a largar Fiora, pegou respeitosamente na carta que lhe estendiam, leu-a e atirou-a, enojada, aos pés do Rei...
Pua! Que coisa tão feia! Espero, Sire, que não acrediteis que donna Fiora é responsável por esse papel desonroso?
É a letra dela, é o selo dela e...