Então, Fiora esforçou-se por atirar para longe de si a evocação desse dia ameaçador, para se consagrar por inteiro ao seu filho. Não vivera muito tempo junto dele e descobria-o com delícia, encantando-se com a sua beleza e inteligência precoce. Nunca tendo visto outra coisa que não sorrisos e não tendo recebido outra coisa que não carícias, o pequenito era uma criança muito alegre. A despeito de um carácter já em afirmação, tinha uma grande alegria de viver e transbordava de ternura pela sua mãe, a quem apelidava, por vezes, de ”minha bela dama”.
Para explicar o facto de Fiora não o acompanhar nunca ao jardim, tinham-lhe dito que ela estivera doente e que precisava de repouso. Apesar de aceitar a explicação sem discutir, Philippe não conseguia compreender por que razão a sua mãe não vivia com Léonarde e ele no castelo, antes no ”quarto reles” que, na sua lógica infantil, não era próprio para uma convalescença. O pequenito não dizia nada, mas demonstrava a Fiora ainda mais amor. Ele, tão turbulento, ficava horas sentado nos joelhos da mãe, encostado ao seu peito, ouvindo histórias e recebendo beijos...
Meu Deus! rezava interiormente Léonarde. Fazei com que depois deste combate idiota a nossa Fiora recupere a liberdade. Senão... oh, nem ouso pensar no que acontecerá!
O mês de Junho passou, doce e florido, com as manifestações alegres da festa do Corpo-de-Deus, que despojaram por completo as roseiras dos arredores e do São João que acendeu, chegada a noite, grandes fogueiras nas praças de todas as aldeias e no pátio de todos os castelos. Em Plessis, Fiora, se ouviu os cânticos e os gritos de alegria, não viu o reflexo da imensa fogueira que a Guarda Escocesa acendeu no primeiro pátio, em frente dos seus aquartelamentos. O seu quarto permaneceu obscuro, como se quisessem fazer-lhe sentir que estava na antecâmara da morte.
Quando pensava no Rei, era com mais tristeza do que cólera, porque se sentia ligada àquele homem a envelhecer, cuja grande fronte abrigava um espírito tão subtil, uma inteligência tão universal. E eis que aquele cérebro excepcional permitira que o medo do assassínio vencesse a amizade, a quase afeição que sentia por ”donna Fiora”. Aquela amizade, depois de ter ajudado a jovem a viver, quebrara-se por causa de uma simples folha de papel, por causa de umas simples linhas cuja letra o Rei não quisera ver que era falsa. Pior ainda, o Rei recusara os dois campeões que se tinham, espontaneamente, oferecido para defender a sua causa e para ter a certeza de que não perturbariam a sua festa macabra, mandara-os para longe. Então, quando esses pensamentos lhe vinham à mente, Fiora ajoelhava-se e rezava...
Chegou o último dia...
Quando Léonarde levou o pequeno Philippe, bem disse que a poeira lhe irritava os olhos, mas era evidente que chorara durante toda a noite. E, de facto, as notícias não eram tranquilizadoras: nem Commynes, nem Mortimer, tinham aparecido e Archie Ayrlie confiara à velha solteirona que, tanto quanto sabia, não se apresentara nenhum campeão. O escocês acrescentara que eram muitos aqueles que, na Guarda, desejavam oferecer as suas armas à prisioneira, mas era de temer que o Rei os rejeitasse, tal como rejeitara Mortimer.
O dia foi longo e penoso para as duas mulheres. Pelo pequenito, mantiveram a atitude habitual, sorrindo-lhe e brincando com ele. Fiora conseguiu-o melhor do que Léonarde, talvez porque não tivesse, realmente, medo. A jovem só lamentava deixar os que amava, não poder abraçar pela última vez a sua querida Lorenza que, essa, nunca conheceria a sua mãe.
No momento de se separarem, ela abraçou Léonarde com uma ternura infinita.
Vós, que sois tão piedosa sussurrou ela, sentindo as lágrimas da velha solteirona na face devíeis ter mais confiança em Deus. Ele é que vai decidir amanhã e, se não quiser que eu morra, nem o Rei nem ninguém poderá fazer o contrário...
É verdade, meu cordeiro, tendes razão e eu não passo de uma velha tola. Mas vou rezar, rezar, rezar tanto que o Senhor há-de ouvir-me! Tenho confiança e se amanhã à noite não vos puder apertar nos braços como agora, quererá dizer que Deus não existe. Mas, nesse aspecto, estou tranquila...
Então, Fiora apertou o seu filho contra o coração e guardou-o ali um instante, cobrindo de beijos ligeiros os caracóis sedosos e a pequena fronte tão suave.
Porta-te bem, coração! Se não me vires amanhã é porque parti para uma grande viagem... por causa da minha saúde!
Ides ver o meu paizinho?
Sim, meu anjo, prometo-te: hei-de ir ver o teu paizinho e talvez, então, te leve comigo...
As lágrimas estavam demasiado próximas e ela não queria que o pequenito as visse. Entregou-o a Léonarde e, suavemente, empurrou ambos na direcção da porta que Grégoire mantinha aberta. O guarda esperava no patamar.
Quando a porta se fechou, Fiora ficou imóvel no mesmo lugar, escutando, nos degraus de pedra, os passos curiosamente pesados de Léonarde a desaparecerem. Depois, ouviu o som da pesada porta que dava para o pátio... Fiora ficou só, só perante si mesma, perante o seu passado, perante os seus pecados, perante os seus amores reais ou simulados.
Tudo aquilo, disse ela para si própria, não passava de uma terrível embrulhada e mais valia que no dia seguinte à morte do seu pai tivesse morrido no juízo de Deus pela água que Hieronyma, certa de sair incólume, pedira para as duas. Há muito que o seu corpo, levado pelas águas amareladas do Arno, se teria fundido no mar azul. Philippe não teria nascido... nem Lorenza, mas Fiora sentia-se menos inquieta pela filha do que pelo filho. Lorenza viveria protegida pelo amor duplo de Agnolo e de Agnelle e talvez também pelo poder do seu pai... se Lourenço de Médícis conseguisse vencer a guerra ímpia a que o Papa o forçava. Enquanto que Philippe, se o seu pai não abandonasse o refúgio ilusório do priorado onde estava para velar ele próprio pelo seu filho, só teria Léonarde, já idosa, e a boa gente de la Rabaudière. Não teria o Rei piedade daquela criança duplamente órfã?
Quando o superior do pequeno convento encerrado nas muralhas de Plessis-lès-Tours penetrou na sua prisão para a ouvir em confissão, encontrou Fiora sentada no seu leito com as mãos pousadas tranquilamente nos joelhos.
A confissão durou muito tempo. Para ser compreendida por aquele homem simples que só ouvia os pecados dos guardas criados do castelo, Fiora teve de lhe contar uma grande parte da sua curta vida. À medida que ia falando, pareceu-lhe tudo tão estranho, tão anormal, que a jovem compreendeu perfeitamente o ar espantado do monge...
Tens a certeza, minha filha, que não estás a inventar nada? perguntou ele, horrorizado quando ela evocou as suas estranhas relações com o Papa. Será possível o nosso Santo Padre ter um comportamento tão negro?
Não me sinto surpreendida com a vossa reacção, senhor abade. Mas vós não sois italiano. A diferença está aí. Eu estou, simplesmente, a tentar fazer-vos compreender por que razão tive de cometer tantos pecados e peço-vos que mos perdoeis com a mesma sinceridade com que eu os lamento. Pensai que amanhã vou comparecer perante o tribunal de Deus. Mas Ele não terá necessidade de explicações...
Depois de o religioso ter abandonado a sua cela, Fiora, recuperada toda a sua coragem, comeu com apetite o fricassé de pato e o patê de vitela que o bom do Grégoire lhe serviu com uma bela salada e uma massa açucarada frita, tudo acompanhado com um vinho de Orleães fresco. Um pequeno cesto de cerejas terminava aquele festim a que a jovem fez as honras, recusando-se a ouvir as fungadelas do seu carcereiro e a olhar-lhe para os olhos, tão vermelhos como os de Léonarde. Após o que se deitou e adormeceu tão tranquilamente como se o dia seguinte fosse um dia como outro qualquer...
Acordando de madrugada para fazer uma longa e minuciosa toillette, Fiora voltou a vestir o vestido de que gostava particularmente, de espesso cendal branco e bordado com pequenos ramos verdes e cordões dourados entrelaçados. Incapaz de fazer a si mesma um daqueles penteados para os quais era necessária a ajuda de uma companheira, escovou cuidadosamente os seus espessos cabelos negros e fez duas tranças, que pregou na nuca com a ajuda de alfinetes, fazendo um pesado carrapito que nenhuma lâmina seria capaz de atravessar. Era a sua maneira de desafiar a morte. Em seguida, pegou num véu branco, colocou-o sobre a cabeça e enrolou-o em redor do seu longo e delgado pescoço como outrora no decurso das suas longas cavalgadas, quando viajava de vestido. Depois, esperou que a viessem buscar.