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Fiora tirou o seu lenço para enxugar o rosto onde o suor se misturava com a poeira. Há muito que o seu chapéu desaparecera na multidão e a rede, com o peso dos seus cabelos, era difícil de transportar. Os seus olhos cinzentos pousaram-se no grego com uma curiosidade onde havia um certo divertimento. Ele envelhecera durante aqueles últimos meses e os seus olhos escuros estavam cheios de melancolia:

Por que não havia de querer? disse ela docemente, pousando os seus dedos no punho nodoso do seu antigo amigo: O sangue que corre aqui mudou?

Por um momento pensei que sim, mas fui punido por isso, porque transporto comigo arrependimentos que são quase remorsos!

Eu sei em que estás a pensar. Estás a pensar naquela cena infeliz em Morat, onde nos dilacerámos mutuamente na tenda vazia do Temerário.

Exactamente!

Tens de esquecer, Demétrios, como eu própria esqueci. Correu tanta água por baixo das pontes, correram tantas nuvens de um lado ao outro do meu horizonte! Ficaste contente, há bocado, por me veres?

Que pergunta!

Eu também fiquei muito feliz. Foi um pouco de Sol depois dos dias negros que acabo de viver. Portanto, como vês, é a única coisa que conta! Tu és tu, eu sou eu e estamos de novo juntos.

Sem responder mas com os olhos marejados de água, ele pôs os seus grandes braços à volta dela e apertou-a contra o peito. Ficaram assim um instante, sem se mexerem, esperando que a emoção comum se apaziguasse. Nunca antes Demétrios tivera para com Fiora aquele gesto do pai que reencontra a filha que pensava perdida. A sua afeição, até então, evitara os gestos e ainda mais as palavras. Fora necessária aquela prova para que o grego compreendesse o lugar que aquela jovem criatura ganhara no seu coração.

E Esteban? perguntou Fiora com o nariz encostado ao fato negro do médico. Sabes o que lhe aconteceu?

Está aqui comigo. Pensei que também o tinha perdido e depois da maldição que a dama Léonarde me lançou aliás justificada! parti sem bem saber para onde ia.

Por que não ficaste com o duque da Lorena? Ou com o Rei Luís?

Nem um, nem outro, tinham necessidade de mim e eu não gosto de impor a minha presença. Esteban, esse, adivinhou a minha tristeza. Juntou-se a mim na estrada e disse-me: ”E se fôssemos ver do nosso jardim de Fiesole e das tabernas nas margens do Arno?” Então, regressámos para aqui...

Não tiveste medo do mal que nos expulsou daqui, a ti e a mim?

Na verdade, não, porque conheço as pessoas. As multidões, geralmente, são versáteis, inconstantes, fáceis de impressionar e as de Florença, são-no, creio, mais do que as outras. Passaram-se dois anos... além disso, morrer longe ou aqui? Não tinha nada a perder.

Que aconteceu, então?

Nada. O senhor Lourenço recebeu-me como um amigo perdido, alojou-me primeiro em La Badia e depois... em tua casa.

Ainda tenho uma casa, aqui?

Continuas a ter a tua villa de Fiesole, que Médicis te guardou. Falámos muitas vezes de ti, sabes? E eu creio que, a despeito do que sofreste, ele sempre esperou que regressasses, um dia.

E a gente lá do alto, acolheu-te bem?

Acolheu, ainda por cima porque uma pequena epidemia de peste, no Verão passado, permitiu-me devotar-me a eles. Os de Fiesole só me querem a mim e também alguns outros, em Florença... mas, peço-te, chega de falar de mim. É a tua história que eu quero ouvir.

Não tiveste nenhuma visão acerca de mim? Tu, que eras capaz de ver através do tempo e do espaço?

Sim, por vezes. Mas era sempre tudo muito vago, porque estavas longe e a minha amizade por ti interpretava mal o que eu via. Fala, por favor!

O silêncio rodeava os refugiados da Cantoria. Os assaltantes da sacristia já só eram alguns, andando em frente da porta fechada e falando em voz baixa, como lobos procurando como atacar. Não havia mais ninguém na nave, senão os raios crus do sol do meio-dia penetrando profundamente. Do alto do seu refúgio e indo encostar-se à balaustrada, Fiora lançou um olhar para o trágico espectáculo dos corpos abandonados sobre o mármore negro em redor de duas grandes manchas púrpuras: o cadáver de Giuliano já hirto pela morte no seu traje de festa e, ao fundo, a forma quase tão rígida do jovem cardeal aterrorizado, junto da cruz cintilante a que continuava agarrado... Fiora suspirou.

Até este dia, em que tudo vai, talvez, desabar no teu universo, tu, ao menos, encontraste a paz. Eu, por outro lado, quase só conheci espinhos, mas também uma grande alegria: o nascimento do meu filho Philippe.

Uma chama, parecida em tudo com a de outros tempos, acendeu-se nos olhos enternecidos do grego e o seu rosto iluminou-se:

Um filho? Tu tens um filho? Oh, Deus... que maravilha!

Sim. Mas talvez não o torne a ver.

Deixando-se cair de encontro à balaustrada, Fiora relatou tão sucintamente quanto possível o que fora a sua vida desde que, em Nancy, tinham desabado o poder e as armas do último grande duque do Ocidente.

Quando acabou, Demétrios não disse nada: parecia transformado em pedra e como estava, sentado muito direito no seu traje negro sujo de pó, as pernas cruzadas, parecia um daqueles velhos sábios que, acocorados na terra vermelha dos mercados do Oriente, cantam a glória do Profeta, os grandes feitos dos califas ou dos seus cavaleiros lendários e deixam, por vezes, sair palavras vindas de uma antiga sabedoria ou de uma visão do futuro. Parecia tão longe, de repente, que Fiora, inquieta, se debruçou e, pousando-lhe uma mão no ombro, abanou-o docemente.

Demétrios! Ouviste o que eu disse?

Ele não se mexeu e os seus olhos permaneceram fixos num ponto qualquer das paredes brilhantes de Santa Maria del Fiore.

Sim... Mas, Fiora... não creio que o teu marido tenha morrido.

O coração da jovem parou, ao mesmo tempo que a sua garganta se apertava e a sua boca secava:

O que é que tu estás a dizer?

Ele teve um longo arrepio que o sacudiu por inteiro e o arrancou à espécie de transe em que estivera mergulhado. Olhou para ela e teve um sorriso débiclass="underline"

Crês que estou louco?

Não... Eu conheço a tua clarividência, mas, desta vez, estás enganado, Demétrios! Philippe subiu para o cadafalso sob os olhares de uma cidade inteira, o mesmo cadafalso onde morreram o meu pai e a minha mãe. Dali ninguém desce e Mathieu de Frame sabia o que estava a dizer quando me anunciou a sua execução.

Sim, eu vi o gládio erguido... mas não vi o sangue. Com uma profunda tristeza, Fiora pensou que, na verdade,

Demétrios tinha envelhecido e que o seu espírito, tão brilhante noutros tempos, envelhecia ao mesmo tempo que o seu corpo. Os velhos tempos tinham morrido, perigosos, sem dúvida, ofegantes e apaixonados, mas que encanto tinham tido. Mortos com Philippe.

A voz de bronze da Vacca continuava a ouvir-se e, no exterior, ouviram-se gritos, cavalos a galope e a grande nave de Santa Maria del Fiora encheu-se com o barulho característico de um grupo de soldados em marcha. Ouviu-se uma voz que precipitou Fiora e, mais lentamente, Demétrios à balaustrada:

Abre, Monsenhor! Sou eu, Savaglio! Não tens mais nada a temer e a cidade é tua!

Era, efectivamente, o capitão da guarda de Lourenço à cabeça de uma companhia cujas armaduras vinham cobertas com as cotas de armas bordadas com a flor-de-lis vermelha. Atrás deles regressava a multidão, metade tranquilizada, a outra metade, talvez, arrependida.

A porta de bronze abriu-se. Ao ver aparecer a alta silhueta magra e o rosto sombrio daquele senhor que fora sempre seu amigo, o povo lançou um grito de alegria que agitou os lustres de cobre e entoou como uma tempestade, Um empurrão brusco, vindo dos que estavam no adro e que tentavam entrar, fez avançar alguns guardas e Savaglio teve de mandar intervir as lanças para salvar o seu senhor da morte por sufocação: