Ahmed aprendeu desse modo a reconhecê-los, e sobretudo a evitá-los. O seu negócio era angariar clientes para a loja e procurava fazê-lo bem. Apesar de estar a lidar com kafirun,
não achava o trabalho totalmente desagradável.
Alguns turistas mostravam-se amigáveis e uns davam-lhe até baksbeesh de cinquenta piastras ou mesmo uma libra, mas o rapaz não se deixava enganar. Tinha sempre bem presente o aviso de Deus na sura 5, versículo 51 do Alcorão: "O vós que credes! Não tomeis a judeus e cristãos por confidentes: uns são amigos dos outros. Aquele de entre vós que os tome por confkienteíserá um deles."
A amizade com os Adeptos do Livro era assim proibida por Alá e Ahmed não o esquecia. Daí que, quando o viam passar pelas ruelas labirínticas do souq com um casal de turistas no encalço e lhe perguntavam para onde ia, tinha sempre a mesma resposta na ponta da língua:
"Vou levar este cão kafir e a sua prostituta para o Inferno!"
XIX
O grupo de jovens palmilhava as ruelas em declive, apreciando as fachadas pitorescas das casas com as flores nas va-randas e as roupas coloridas a secarem às janelas. Em alguns cantos cheirava a vinho, por influência das tabernas àquela hora ainda encerradas, e noutros a urina; eram os efeitos da folia nocturna. À frente do grupo, o professor ia chamando a atenção para os pormenores que deveriam observar.
"Já não existem aqui casas mouriscas", explicou Tomás aos seus alunos da disciplina de Estudos Islâmicos. "Mas, se repararem bem, Alfama mantém um certo ar de casbab, não acham?"
Os alunos assentiram, as cabeças voltadas em todas as direcções. A maior parte da classe era muçulmana, mas alguns revelavam-se cristãos ou agnósticos movidos pela curiosidade. Desceram as escadarias e dobraram a igreja, alcançando o terraço do Miradouro de Santa Luzia. Os múltiplos telhados vermelhos e o distante caudal azul do Tejo abriram-se
diante dos seus olhos, mostrando-lhes Lisboa antiga em todo o seu esplendor.
"Pintarola!", exclamou um dos estudantes.
Deixaram-se ali ficar, a descansar e a contemplar a magnífica vista da cidade. A mente do professor, porém, fervilhava de ideias. Desde que voltara de Veneza que andava a imaginar qual a melhor forma de interpelar os seus alunos mruçulnfanos sobre questões políticas, e em particular as relacionadas com o fundamentalismo islâmico. O problema é que não via maneira satisfatória de o fazer. O assunto era totalmente estranho às aulas e aqueles jovens, despreocupados e alegres, pareciam-lhe ter tanta relação com o fundamentalismo como a água com o azeite.
Mas, que diabo!, o facto é que aquele e-mail da Al-Qaeda fora aberto em Lisboa. Era fundamental que começasse a fazer perguntas, mesmo às pessoas mais improváveis. Como os seus alunos muçulmanos.
Foi por isso que decidiu sair da faculdade e dar aquela aula ali, ao ar livre, visitando Alfama e a Mouraria, os bairros da antiga Lisboa muçulmana.
Sabia que só nesse contexto conseguiria criar um ambiente propício às questões que precisava de levantar.
O estudante mais próximo de si era Suleiman, um rapaz tranquilo cujos pais, de origem indiana, tinham vindo de Moçambique na década de 1960 e se tinham tornado advogados de grande nome em Lisboa.
Tomás viu ali a sua oportunidade.
"Suli, viste ontem as notícias?"
O aluno desviou os olhos da paisagem lisboeta.
"Sim, claro. Porquê?"
"Grande chatice, aquilo na índia, hem?"
Suleiman suspirou e fez uma interjeição com a língua.
"Nem me fale nisso."
"Já viste o que lhes deu? Saíram às ruas e puseram-se a disparar sobre toda a gente..." "São malucos. Doidos varridos."
Três gaivotas aproximaram-se do miradouro em voo rasante e a grasnar sem parar, obrigando alguns jovens a encolherem-se. Seguiram-se algumas risadas e piadas trocadas entre eles a propósito do incidente.
Tomás deixou passar uns segundos antes de voltar à carga.
"E se isso acontecesse aqui?"
"O quê?"
"Os atentados, Suli. Imagina que esses tipos, esses fundamentalistas, pegavam em armas e... sei lá, vinham aqui para Alfama, por exemplo, e começavam a matar toda a gente que lhes aparecia pela frente.
Já viste a confusão que era?"
Suleiman fez um ar interrogativo.
"O professor está a falar a sério?"
"Ó Suli, quem nos garante a nós que isso não acontece aqui? No fim de contas, há fundamentalistas em toda a parte, não é verdade?
Basta um punhado deles para lançar o caos..."
"Nós estamos em Portugal!", devolveu o rapaz, como se esse facto fosse, por si próprio, eloquente.
"Aqui não há dessa gente!"
"Como podes ter a certeza disso?"
Uma expressão baralhada perpassou pelo rosto do estudante.
"Porque... não sei, porque... ora, porque isso saber-se-ia", gaguejou.
"Saber-se-ia como?"
"Quer dizer, eu já teria ouvido alguém falar nisso, por exemplo. Ou alguém já teria comentado alguma coisa. Sabe, a conversa dos fundamentalistas é uma coisa que se nota, não passa despercebida..."
"E tu nunca ouviste nada?"
"Claro que não." Tomás olhou em redor. "Nem o resto do
pessoal?"
Suleiman virou também o rosto para o grupo e, com descontracção, lançou a pergunta.
"Malta! Alguma vez alguém ouviu... sei lá...
aJguém*escu-tou um caramelo qualquer a falar de...
de jihad, ou coisas no estilo?"
O grupo assumiu uma expressão de perplexidade.
Mas um deles, o Alcides, deu um passo em frente, o rosto muito compenetrado.
"Eu já."
Tomás arregalou os olhos. "A
sério? Quem?"
Alcides estreitou os olhos, assumiu uma pose de conspirador, olhou em redor e, assegurando-se de que ninguém o ouvia fora do grupo, inclinou-se para a frente e murmurou com ar muito compenetrado:
"O Sylvester Stallone. No Rambo."
A conversa desfez-se em galhofa.
XX
"Vou levar este cão kafir e a sua prostituta para o Inferno!"
Andava havia três anos a responder a mesma coisa sempre que o interpelavam em árabe no souq a caminho da loja dos cachimbos de água com um casal de turistas no encalço.
Só que, certo dia, aconteceu uma coisa inesperada.
Ahmed tinha já quinze anos e percorria o Khan Al-Khalili com perfeito à vontade, como se sempre tivesse ali vivido. Nessa tarde decidiu ir ao El Fishawy angariar turistas. O café mais antigo do Cairo situa-se numa ruela estreita e movimentada por trás da Midan Hussein. É um estabelecimento com história, dis-tinguindo-se por uma atmosfera exótica que um dia atraíra até o próprio rei Faruk e que parecia ser do agrado dos kafirun.
Os turistas refastelavam-se nos sofás e nas cadeiras do El Fishawy para fumar sheesha ou beber chá
aromático,
apreciando
a
decoração
requintadamente deteriorada do café e o burburinho agitado no souq. A viela era uma passagem estrei ta, protegida do Sol inclemente por enormes toldos, mas focos de luz esgueiravam-se pelos cantos e faziam brilhar a poeira e o fumo perfumado dos cachimbos de água, formando no ar diamantes cintilantes e assumindo tonalidades fantásticas num incessante jogo com as sombras.
Depois de passar os olhos pelos clientes instalados no exterior do El Fishawy, a atenção de Ahmed prendeu-se num casal que fumava sheesha numa salinha interior. "Mister, está boa a sheesha}"
O americano levantou o polegar direito e piscou o olho. "Excelente."
"Gostaria de comprar um cachimbo de água ainda melhor do que esse?"