O turista soltou uma gargalhada.
"Gee, nem aqui vocês nos deixam em paz!"
"Mas, mister, é a mais antiga loja de sheesha do Cairo!" Apontou para a fotografia que o El Fishawy expunha na parede com o rei Faruk sentado numa mesa do café. "Até o rei ia lá abastecer-se!"
Era tudo mentira, claro. O estabelecimento de Arif estava longe de ser antigo e muito menos tivera visitantes ilustres, mas aquelas palavras pareciam funcionar junto de muitos turistas e estes não seriam excepção. Depois de trocarem algumas palavras, Ahmed apercebeu-se de que se tratava de americanos. O homem era um loiro falador, mas a mulher, de tez trigueira e grandes óculos escuros, permanecia calada, para agrado do jovem egípcio. A americana teve o cuidado de manter o recato, o que lhe parecia de louvar; afinal as mulheres sempre têm de saber ocupar o seu lugar. Assim sendo, Ahmed apenas tivera de conversar com o marido em inglês, acabando por convencê-lo a visitar a loja de Arif para ver o que pomposamente designou como "os cachimbos de água mais procurados do Cairo".
O guia e os clientes saíram do El Fishawy e calcorrearam apressadamente as ruas do souq. Já na movimentada Sharia Al-Muizz li-Din Allah, a principal rua do Cairo medieval, viraram em direcção ao complexo Al-Ghouri. O minarete pintado com os motivos de xadrez vermelho funcionava como um farol, uma vez que era à sombra dele que se encontrava a loja dos cachimbos de água de Arif, e passaram pelo velho vendedor de especiarias que há anos fazia a Ahmed a mesma pergunta galhofeira.
"Onde vais tu tão apressado?"
Sem se deter, Ahmed lançou a resposta habitual.
"Vou levar este cão kafir e a sua prostituta para o Inferno!"
Alguns passos adiante, o guia apercebeu-se de que o casal parara atrás dele. Parou também e deu meia volta, sem compreender qual era o problema.
"Então, mister} O que se passa?"
Para espanto de Ahmed, quem respondeu não foi o americano, mas a mulher.
"O que nos chamaste?"
Ahmed ficou boquiaberto. A americana falara. Em árabe. "Como disse?"
"Eu perguntei-te o que nos chamaste", repetiu ela, a voz cortante e fria.
O rapaz abanou a cabeça, tentando reordenar os pensamentos. A americana dirigira-se a ele num árabe fluente, embora com um inconfundível sotaque estrangeiro; pareceu--Ihe libanês. E o que dissera ele que suscitasse aquela pergunta naquele tom? Fez um esforço para reconstituir o minuto anterior.
Vinha ele a andar pela ruela, desaguara na rua principal, vira o velho do costume sentado no sítio de sempre, o velho perguntara-lhe onde iam e ele dera-lhe a resposta habitual, ia levar o cão kafir e a sua prostituta para...
Por Alá! A cadela kafir entendera!
"O que se passa?", interrogava-se o americano em inglês, sem nada compreender. "Porque parámos?"
O homem manifestamente não falava árabe, confirmou Ahmed. Só a mulher. Ela continuava a fitar o rapaz de um modo intenso e o jovem, passada a surpresa de perceber que as suas palavras haviam sido compreendidas, deyolveifr-lhe o olhar sem se mostrar intimidado. Pelo Profeta, nenhuma mulher o faria vacilar!
"O que nos chamaste?", insistiu a turista.
"Chamei-vos o que vocês são!", disse Ahmed, olhando-a nos olhos com uma expressão de desafio.
"O que se passa, sweetie?", voltou o americano a perguntar, pressentindo que algo não estava bem.
"Explica-me."
Sem descolar os olhos de Ahmed, a mulher falou em inglês.
"Este tipo chamou-te cão infiel a ti e prostituta a mim." O homem arregalou os olhos, perplexo e embasbacado, duvidando até de que ouvira bem. "O
quê?"
"E o que te digo, Johnny. Ele insultou-nos." Passado o pasmo inicial, o rosto do americano enrubesceu e, com um gesto rápido e inesperado, esbofeteou Ahmed. Paf.
"Como te atreves?", rosnou, subitamente enraivecido.
Apanhado de surpresa, o rapaz caiu no chão e sentiu o americano aproximar-se.
"Porco árabe!" Seguiu-se um pontapé, que passou de raspão nas costas do guia. "Toma! Quem pensas tu que és?"
O medo de Ahmed tornou-se subitamente fúria.
Ergueu-se de um salto e atirou-se às cegas sobre o americano, socando-o consecutivamente, de qualquer maneira, umas vezes acertando-lhe no rosto ou no corpo, outras atingindo o ar, mas sempre a socar, num frenesim furioso, imparável, louco. Deixou de ver bem, tudo o que registava era uma refrega raivosa, via uma mão, um rosto, o chão, uma loja, um pé, uma mão, tudo numa sequência imparável, numa confusão indescritível, numa cólera descontrolada.
"Cão kafir!", vociferou no meio daquele caos enfurecido. "Que Alá te envie para o fogo eterno!"
Gerou-se um pequeno tumulto em plena rua. Ahmed sentiu inicialmente que a violência do seu ataque apanhara o adversário em contrapé, embora ao cabo dos primeiros golpes ele tenha começado a reagir.
Redobrou a fúria do assalto, numa tentativa de decidir logo a contenda, mas o seu novo ímpeto foi inesperadamente interrompido por duas mãos duras como ferro que o puxaram pelo ar.
"Larga-o!", ordenou uma voz em árabe. "Larga-o!"
Ahmed sentiu o braço direito rodar e quase explodir de dor, preso atrás das costas. Levou um murro no estômago e a dor transferiu-se para aí, aguda e devastadora. Contorceu-se sobre si próprio e bateu com a testa no chão. Sentiu dois pontapés nas costelas e um no nariz. Tentou abrir os olhos e viu tudo vermelho; era o sangue que lhe jorrava abundantemente pela cara. Mas no meio de toda aquela barafunda conseguiu vislumbrar de relance os homens que intervieram e, reconhecendo os rostos sérios e compenetrados, percebeu que estava perdido.
Eram polícias à paisana.
O juiz tinha um ar algures entre displicente e indiferente no momento em que ergueu o martelo de madeira e olhou para o rapaz que, do banco dos réus, o fitava com assustada ansiedade.
"Por ofensas à integridade física de um turista e à integridade moral de uma mulher", proclamou apaticamente, "condeno o arguido, Ahmed ibn Barakah, a três anos de prisão!"
O martelo caiu com estrondo na mesa.
Pak.
Acto contínuo, um polícia puxou-o pelos ombros e Ahmed mal teve tempo de ver a mãe esconder a cara para ocultar as lágrimas, o pai estremecer de vergonha nas bancadas semi-desertas do tribunal e Arif abanar a cabeça de desalento. Num piscar de olhos saiu da sala de audiências e foi arrastado pelos corredores deslavados e opressivos até ao carro celular, onde o aguardavam os outros condenados do dia. Fazia calor, como sempre no Cairo, mas o que lhe ardia nesse dia era a alma. De medo e de indignação.
Sentou-se no carro celular, os olhos perdidos no infinito, enquanto aguardava que chegassem ainda mais condenados e os levassem para a cadeia. Três anos de prisão por ter posto na ordem um kafir e a sua prostituta! Três anos! Mas que país era aquele que dava mais importância a dois kafirun que a um crente? Ainda por cima, ele limitara-se a responder às agressões de um desses cães! Abanou a cabeça, num misto de indignação e de comiseração. Queriam lá ver aquilo? Um kafir já era mais importante do que um crente! Como era possível?! Um kafir tornara-se mais importante do que um crente! Por Alá, onde aquele país já chegara!...
Aos olhos de Ahmed, o seu julgamento resumia-se a uma narrativa de simplicidade arrepiante. O
turista americano não passava afinal de um jornalista que estivera a cobrir a guerra civil no Líbano. Viera ao Cairo com a sua meretriz libanesa, uma cadela cristã decerto apaniguada dos malditos Gemayel, e, por vingança pelo justo correctivo que lhe fora aplicado, usara toda a sua influência para arregimentar a embaixada americana e pressionar a condenação de um crente. O governo, constituído evidentemente por fantoches dos Americanos, vira-se decerto forçado a meter-se ao barulho e pressionara o tribunal. O juiz tinha tido medo e condenara-o. Realmente, só assim se conseguia entender que o juiz desse mais importância a um kafir do que a um crente.