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E o antigo professor fazia-lhe a vontade.

A primeira ocasião em que se voltaram a encontrar a sós

no pátio da cadeia foi numa manhã soalheira, mas anormalmente fresca.

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"O nosso governo é formado por kafirun", proclamou Ayman. "Toda esta gente que manda em nós, todas estas leis que nos regem e que nos enviaram para a prisão... tudo isto é coisa de kafirun que se fingem crentes."

Falava como se não os estivesse a insultar, mas a fazer uma mera constatação teológica, o que intensificou a curiosidade de Ahmed.

"Meu irmão, achas mesmo isso? O nosso governo é... é kafirr

"Com certeza. Está no Livro Sagrado. Qualquer crente estudioso sabe isso. O governo é kafir, não há dúvida nenhuma."

Ahmed meditou nestas palavras.

"Mas onde está isso escrito no Livro Sagrado, meu irmão?" Que eu saiba, os nossos governantes declararam a shahada, fazem o salat e acreditam em Alá. Isso não faz deles muçulmanos?"

Ayman sentou-se com um gemido de prazer num banco do átrio, o sol ardente a tostar-lhe a tez.

"Deixa-me contar-te um haditb que teve grandes implicações no islão", começou por dizer enquanto se acomodava no seu lugar. "Certa vez dois homens foram ter com Maomé, que a paz esteja com ele, e pediram-lhe que decidisse uma disputa. O Profeta, que a paz esteja com ele, decidiu, mas o homem prejudicado disse que não aceitava essa decisão e foram os dois falar com Omar ibn Al-Khattab. Ao saber que o prejudicado não aceitara o julgamento do Profeta, que a paz esteja com ele, Omar pegou na espada e decapitou-o." Inclinou a cabeça na direcção do aluno, num gesto interrogativo. "Estás a ver o problema que se criou, não estás?"

"Omar violou a sbaria", percebeu Ahmed.

"Recita-me o versículo que estabelece a lei que Omar violou", ordenou Ayman, testando a compreensão e a memorização do Alcorão pelo seu antigo aluno.

"«0 vós que credes», diz Alá na sura 3, versículo 3:

«Não vos mateis!»"

Ayman balançou aprovadoramente a cabeça.

"Nem mais! Omar tinha violado a sbaria! Ou, pelo menos, assim parecia. Tendo um muçulmano assassinado outro muçulmano, a sbaria requeria que o assassino fosse executado. Omar teria pois de ser morto. O Profeta, que a paz esteja com ele, viu-se então obrigado a julgar o caso. Foi nessa altura que Deus, através do anjo Gabriel, lhe recitou a frase que está na sura 4, versículo 65: «Mas não, pelo teu Senhor! Não acreditaram antes de te haverem obrigado a julgar sobre o que está em litígio entre eles; em seguida, não encontrando em si mesmos queixa sobre o que sentencies, submeter-se-ão totalmente.» Ou seja, o que Alá comunicou ao Profeta através do anjo foi que, ao não aceitar a decisão do Profeta, o homem prejudicado deixara de ser muçulmano. Assim sendo, Omar não matara um muçulmano, mas um kafir. Não tinha então de ser executado. Percebeste?"

"Sim, meu irmão."

"Agora diz-me: quais as consequências desta decisão?" Ahmed franziu o sobrolho. "Omar foi salvo?"

"Isso é evidente!", exclamou Ayman, subitamente exasperado. "Claro que Omar foi salvo! Mas o que este episódio e este versículo têm de importante não é isso! O importante é que ficaram estabelecidas duas coisas fundamentais: matar kafirun não é necessariamente crime e não aceitar todas as decisões do Profeta faz de nós kafirun. Repito: todas. Lembra-te que está dito no final da sura 4, versículo 65: «Sebme-ter-se-ão totalmente.» Se a submissão for parcial, a pessoa deixa de ser muçulmana. A submissão tem, pois, de ser total. O

mesmo, aliás, diz Alá na sura 4, versículos 150 e 151

do Santo Alcorão: «Os que não crêem em Deus nem nos Seus Enviados desejam estabelecer uma distinção entre Deus e os Seus Enviados. Dizem:

'Cremos nuns e não cremos nos outros.' Desejam tomar entre aqueles um caminho intermédio. Esses são verdadeiramente os infiéis.» Ou seja, não há caminho intermédio. Se não aceitarmos todas as leis, tornamo-nos kafirun."

"O que quer dizer com isso, meu irmão? Se eu falhar uma lei, uma única que seja, deixo de ser muçulmano?"

"E isso mesmo o que diz Alá no Santo Alcorão! Para se ser muçulmano é preciso respeitar sempre todas as leis. Basta falhares em algumas delas e deixas de ser muçulmano. Por exemplo, tu rezas cinco vezes por dia, não é verdade?"

"Sim, sem falhar."

"Se rezas cinco vezes por dia, como o Santo Alcorão requer, mas se por acaso não respeitas o jejum no Ramadão, como o Santo Alcorão exige, deixas de ser crente e tornas-te kafir. Entendeste?

O próprio Ibn Taymiyyah, referindo-se aos Mongóis que aceitaram o islão mas mantiveram algumas das suas práticas pagãs, disse: «Qualquer grupo que aceite o islão, mas ao mesmo tempo não pratique alguns dos seus preceitos, deve ser combatido por acordo de todos os muçulmanos»."

"Ah!", exclamou Ahmed, coçando o couro cabeludo.

"Foi por isso que, naquela última aula na madrassa, o meu irmão disse que os sufis não são crentes!"

"Exacto! Fizeram a sbahada e praticam o salat e a zakat, podem até cumprir o hadj e respeitar o jejum no mês sagrado, mas, ao invocar santos nas suas orações, renegam que só há um Deus. Não cumprem assim todos os preceitos do islão, o que, à luz do estabelecido no Santo Alcorão e na sunnab, faz deles kafirun."

"Estou a perceber..."

"Mas ainda é preciso que percebas uma outra coisa", apressou-se a acrescentar. "Como sabes, Alá cansou-se de ver a Sua palavra deturpada por intermediários e decidiu ditar as Suas leis uma última vez aos homens. Escolheu Maomé, que a paz esteja com ele, como mensageiro. Só que, para impedir que a Sua palavra fosse de novo deformada, Alá proibiu a existência de intermediários e obrigou que a Sua lei ficasse inscrita no Santo Alcorão. Não haveria desse modo possibilidade de desvios. Quem quisesse reinterpretar a vontade de Deus seria confrontado com o que Ele deixara escrito no Livro Sagrado. A sbaria é assim uma ordem dada directamente por Alá aos crentes, sem influência de intermediários. «Não temais os homens, mas temei-Me», diz Deus na sura 5, versículo 44."

"Tudo isso já eu sei, meu irmão. E então?"

Ayman fitou os olhos do seu antigo aluno.

"Recita-me, por favor, a frase do testemunho que o muezzin faz no adhan, quando chama os crentes para a oração."

"«Ash-hadu na la illaba illallab", entoou Ahmed.

"«Sou testemunha de que não há nenhum Deus senão Alá». u«Asb-hadu Mubammad ur rasulullab»", completou. "«Sou testemunha de que Maomé é o Seu profeta»."

"Essa declaração que acabaste de recitar implica a nossa submissão a Deus e Deus apenas", atalhou Ayman. "«Não há nenhum Deus senão Alá.» Isso significa que todas as outras autoridades existentes na Terra, incluindo presidentes e governos, valem menos do que a vontade de Alá, expressa directamente no Santo Alcorão. Isto quer dizer que a vontade de Alá tem de ser obedecida, mesmo que isso implique*deso-bedecer a um presidente ou a um polícia. Alá manda acima de todos. Está claro?"

"Bem... sim." Hesitou. "O Profeta defendia isso?"

"Claro!", exclamou Ayman, quase escandalizado com a pergunta. "Não conheces o hadith do encontro do cristão Adi com o apóstolo de Deus, que a paz esteja com ele?"

"Confesso que não."