"Confusos?"
"Sim, confusos! Nem conseguem trabalhar!
Instala-se o caos total! A sociedade mergulha na anarquia mais completa! É a fitna absoluta!"
Adara ficou um instante calada a olhar para o marido, como se tentasse decidir por onde começar.
Depois levantou--se a custo e caminhou devagar em direcção da cozinha.
"Quando eu frequentava a minha madrassa no Cairo, as professoras também me davam essa explicação. Diziam que nós, as mulheres, temos um grande poder no nosso corpo e que, se o exibirmos em público, a sociedade se desintegra."
Aproximou-se da janela e chamou o marido. "Anda cá ver uma coisa."
Sem perceber onde ela pretendia chegar, Ahmed aproximou-se.
"O que é?"
"As mulheres kafirun tapam-se?"
"Sabes bem que não", devolveu ele com desprezo.
"Essas ímpias não passam de umas prostitutas que não têm vergonha de exibir o corpo aos olhares impudicos."
Adara apontou para a rua.
"Então olha lá para fora e diz-me: vês homens a correrem de um lado para o outro a ferver de desejo? Vislumbras anarquia em alguma parte? Se tudo o que tu e as professoras da minha madrassa dizem é verdade, como explicas que esta terra de kafirun seja muito mais organizada e ordenada do que a terra dos crentes? Como explicas que eu ande na rua destapada e não haja homens a lançarem-me olhares lúbricos? Como explicas que tudo funcione aqui tão bem quando há milhares de mulheres a circular destapadas por toda a parte? Onde está a fitnaf Onde está o caos? Onde está a anarquia?"
Os olhos de Ahmed passearam pela rua diante do seu apartamento. A paisagem era realmente muito mais harmoniosa do que a confusão a que se habituara no Egipto. As pessoas circulavam tranquilamente e os homens não davam sinais de se babarem sempre que se deparavam com um tor nozelo feminino. É certo que já vira operários lançar piropos sujos a raparigas, mas eram ocasiões relativamente raras e no Cairo até já assistira a assédio bem mais intenso. Observou lá ao fundo uma mulher a passar com os ombros descobertos e o homem com quem ela se cruzou no passeio não sofreu qualquer ataque de nervos nem teve nenhuma erupção de lascívia sexual. Como explicar tal mistério?
Com um esgar de despeito, o marido voltou as costas à janela e abandonou a cozinha.
"A explicação é simples", resmungou ao sair. "Os kafirun não são verdadeiros machos!"
XXXIX
A ruiva lasciva inclinou-se sobre Tomás, deixando vislumbrar os seios opulentos por entre a gola entreaberta da camisa, e abriu-se num sorriso maravilhoso.
"Deseja mais alguma coisa?"
Ao ouvir esta pergunta, o historiador engoliu em seco. "Não, obrigado."
A ruiva pousou-lhe o copo de champanhe no tabuleiro, voltou a sorrir e deu meia volta, bamboleando o traseiro até desaparecer por entre as cortinas da parte dianteira do avião.
"Jesus!", exclamou Rebecca, que estava sentada ao lado de Tomás a observar a cena. "Você tem realmente saída com as mulheres. Até as hospedeiras lhe fazem olhinhos!"
O português de olhos verdes torceu a boca e esboçou um esgar de comiseração.
"Elas percebem que você não me liga nenhuma...", murmurou num queixume fingido.
A americana soltou uma gargalhada.
"Ah, lá está você a apalpar o terreno!"
"Infelizmente é a única coisa que apalpei até agora..."
Rebecca olhou-o de esguelha.
"Se quiser algo mais, tem de o merecer!"
"Ai sim?", animou-se Tomás, abrindo-se num sorriso sedutor. "Então o que preciso eu de fazer?"
A americana dobrou-se no assento e tirou uma pasta de cartolina que guardara no saco que tinha aos pés. A capa da pasta trazia impressa a águia americana no topo, a sigla da NEST por baixo e as palavras Top Secret carimbadas a vermelho no canto.
"Precisa de fazer o seu trabalho", respondeu ela, assumindo
uma
postura
profissional
e
estendendo-lhe a pasta. "Leia."
Com ar resignado, o historiador pegou na pasta de cartolina e abriu-a. No interior encontravam-se resmas de papel com o nome da Al-Qaeda referenciado em título. Percebeu que havia fotografias mais adiante e foi direito a elas. Umas mostravam homens de roupas árabes e cabeça tapada, com armas nas mãos; outras eram imagens de edifícios, tiradas por meios aéreos ou mesmo no local, com uma legenda a indicar "campos de treino"; outras ainda exibiam cães mortos no interior do que parecia ser uma câmara estanque. Havia também fotografias exibindo diversos rostos árabes e duas delas eram de Osama Bin Laden, uma com o líder da Al-Qaeda a disparar uma Kalashnikov.
"Isto é um dossiê sobre a Al-Qaeda", constatou Tomás.
"Gee, Tom! Você é um génio!"
Ignorando o tom de ironia, o português fechou a pasta e devolveu-a a Rebecca.
"Oiça, eu não sou génio nenhum", disse. "Sou um historiador e esta matéria é do seu foro, não do meu."
"Mas você está a trabalhar para a NEST, Tom, e temos uma emergência em mãos", argumentou Rebecca. "O seu ex--aluno disse-lhe que a Al-Qaeda está na posse de material radioactivo. As palavras em russo inscritas nas caixas que ele fotografou revelam tratar-se de urânio enriquecido a mais de noventa por cento. Ou seja, é material militar. Isto é muito grave e, uma vez que você está envolvido na operação, era bom que se familiarizasse com este assunto."
"Você já leu essa papelada toda?"
"Claro."
Tomás pegou no copo de champanhe que a hospedeira ruiva lhe tinha oferecido e bebericou um trago.
"Então faça-me um resumo."
Rebecca suspirou, vencida, e abriu a pasta.
"Muito bem", disse. "O que aqui está é o que sabemos sobre os projectos da Al-Qaeda em relação à construção e uso de bombas nucleares, projectos que remontam à década de 1990. Um sudanês que desertou do movimento, um tipo chamado Jamal Ahmad Al-Fadl, revelou-nos que Bin Laden esteve nessa altura empenhado na compra de urânio enriquecido por um milhão e meio de dólares. O
nosso informador disse ter visto, com os seus próprios olhos, um cilindro com uma série de letras e números gravados no exterior, incluindo um número de série e as palavras Africa do Sul, identificando a origem do urânio enriquecido."
"O que aconteceu a esse material?"
"Não sabemos."
Tomás espreitou a pasta.
"Considerando o volume desse dossiê, presumo que haja ainda mais pistas."
A americana folheou os documentos que se encontravam no interior da pasta.
"Claro que há", confirmou., extraindo uma fotografía que virou na direcção de Tomás. '"Está a ver isto?"
A imagem mostrava uma sequência de tendas miseráveis, com homens de turbante, mulheres a cozinhar sobre lenha e crianças andrajosas a brincar ma terra.
"Parece um campo de refugiados."
"Muito bem!", exclamou el;a, como se o historiador tivesse acertado uma pergunta num concurso televisivo. "E o campo de Nasirbagh, na fronteira entire o Paquistão e o Afeganistão. A polícia encontrou aqui, em 1998, dez quilos de urânio enriquecido. O material estava nas mãos de dois afegãos que iam partir para o Afeganistão.'" Baixou a voz, como se fizesse um aparte. "Sabe quem nessa altura operava livremente no Afeganistão, não sabe?"
"A Al-Qaeda."
Rebecca guardou a fotografia e tirou outras duas.