A transformação.do capacete durou um basike (que maçada, julgo-me ainda em Ella!). Durou, pois, mais ou menos uma hora e um quarto.
Vestido com o escafandro e com o capacete posto, penetrei na cripta, devagar. O
Mislik voltava-me as costas. Não me afastei portanto demasiado da porta e fiz o contacto.
Instantaneamente, fiquei submerso numa onda de angústia, que não vinha de mim, mas da angústia do Mislik: uma sensação terrível de isolamento, de solidão, tão grande que quase gritei. Longe de ser a criatura puramente intelectual, sem nenhum sentimento, que tinha imaginado, o Mislik era então um ser como nós, capaz de sofrer. Paradoxalmente, pareceu-me mais temível ainda, por estar tão próximo, sendo tão diferente! Não pude me conter e cortei o contacto.
E então? — perguntou Assza.
— Não pensei que ele sofresse tanto! — disse, transtornado.
— Atenção! Está acordando!
O Mislik movia-se. como da última vez, avançava, lentamente, direto sobre mim.
Restabeleci o contacto. Desta vez não foi uma mensagem de sofrimento que recebi, mas uma onda de ódio, um ódio absoluto, diabólico. O Mislik avançava sempre.
Peguei na minha pistola de calor. Ele parou, emitiu para mim um ódio ainda mais violento, que eu sentia quase fisicamente, como uma onda morna e viscosa. Então, por minha vez, emiti para ele:
— Meu irmão· de metal, — pensei não lhe quero mal. Para que é preciso que os Hiss e vocês mesmos se destruam? Por que parece a lei do mundo ser um homicídio?
Por que é preciso que uma espécie massacre a outra, um reino um outro ·reino? Não odeio você, estranha criatura. Veja, meto a minha arma no coldre!
Não julgava ser compreendido; no entanto, à medida que pensava sentia o ódio decrescer, passar a último plano, e um sentimento de surpresa substitui-lo sem o atingir. O Mislik continuava imóvel. Rememorei os ensinamentos dos filósofos pretendendo que a matéria deve ser a mesma em todo o universo, o que me parecia confirmado pelos Hiss, e pus-me a pensar em quadrados, retângulos, círculos. Recebi em resposta uma onda de espanto mais intensa, depois imagens invadiram o meu pensamento: o Mislik me respondia. Ai de mim! Tive depressa de me render a evidência: nenhuma comunicação seria sem dúvida possível; as imagens ficavam fluidas, como imagens de sonho. Me pareceu antever estranhas figuras concebidas por um espaço que não era o nosso, um espaço que fazia apelo a mais de três dimensões. Mas tão depressa pensei tê-las compreendido desvaneciam-se, deixando— me pesaroso de ter estado quase apanhando um pensamento absolutamente estranho ao nosso. Fiz uma derradeira tentativa, pensei em números, mas isto não teve melhor sucesso. Recebi, em troca, noções absolutamente incomunicáveis, incompreensíveis, com zonas isoladas, durante as quais nada recebia. Experimentei imagens, mas nada pude encontrar que acordasse nele uma ressonância, nem mesmo uma estrela resplandecente no céu negro. A noção da luz tal como nós a concebemos devia ser desconhecida para ele Interrompi então as minhas experiências, e qualquer coisa da minha melancolia devia ter chegado a ele, porque me enviou uma nova onda de angústia, já com todo o ódio extinto e um sentimento pungente de impotência. Afastou-se sem ter emitido a sua irradiação mortal.
Assim, contrariamente ao que ensinam certos filósofos, a tristeza e o medo são os mesmos, duma extremidade a outra do universo, mas dois e dois nem sempre fazem quatro. Havia nesta impossibilidade de trocar a idéia mais simples, enquanto os sentimentos complexos passavam facilmente dum ao outro, qual-quer coisa de trágico.
Subi ao laboratório e confessei a minha semi-derrota Os Hiss não se impressionaram desmedidamente. Para eles o Mislik era o Filho da Noite, o ser odioso por definição, e o seu interesse nesta experiência tinha sido puramente científico. Não sucedia o mesmo comigo, e ainda hoje me aflijo por não ter podido, já não digo compreender, mas, ao menos, apanhar, um pouco que fosse, da essência intelectual destes seres estranhos.
Quando deixamos a ilha caía a noite. Os dois satélites de Ella brilhavam no céu crivado de estrelas. Arzi é dourada como a nossa Lua, mas Ari tem uma sinistra cor avermelhada que sempre me faz recordar um astro maléfico. Aterramos ao clarão da lua e das estrelas, sobre a grande esplanada inferior, porto da Casa dos Sábios. Na outra extremidade antevia-se a enorme massa fusiforme da astronave sinzu, brilhando francamente na noite. Para minha tristeza, não me foi permitido entrar na sala da reunião. Szzan e eu tivemos de ir pra Casa dos Estrangeiros, espécie de hotel situado nos bosques do terraço inferior.
Jantamos juntos, depois fomos passear. O nosso passeio levou-nos até as proximidades da astronave Ao fazer uma volta, fomos retidos por um pequeno grupo de Hiss.
— Não se pode ir mais longe — disse um deles — Os Sinzus guardam o aparelho e ninguém pode aproximar-se sem autorização. Mas quem é que vem com você? — perguntou ele a Szzan.
Um habitante do planeta Terra, da estrela Sol, do Décimo Oitavo Universo, o único que está entre nós no momento. Veio com Aass e Souilik. Os Milsliks não o podem matar.
— Que diz você? Será um homem da Profecia? Os Sinzus também têm o sangue vermelho, dizem, mas não conhecem os Milsliks!
— O Tsérien desceu ainda hoje na cripta da ilha Sanssine e, veja, está aqui!
— Quero ver — disse ele então.
Uma luz doce brilhou no seu ligeiro capacete. A guarda da astronave não era certamente uma brincadeira! Era a primeira vez que eu observava em Ella qualquer coisa semelhante a um exército.
— Você se parece com os Sinzus. Vi três quando desembarcaram esta tarde. Mas você é mais alto, mais pesado e tem cinco dedos nas mãos. Ah! Vou demorar ainda em poder participar nas viagens do ksill. Sou estudante ainda…
Me lembrei de que em Ella todo o indivíduo cumpria duas espécies de trabalhos, tal como Souilik, que era ao mesmo tempo oficial de ksill e arqueólogo.
Um grande grito modulado arrastou-se na noite estrelada. — Uma sentinela sinzu — disse o nosso interlocutor. Chamam-se assim todos os meios basikes. Agora sou obrigado a pedir que voltem para trás.
Reentramos na Casa dos Estrangeiros. Compunha-se de uma série de pequenos pavilhões, dispersos sob as árvores, onde se hospedavam aqueles que o Conselho tinha convocado e que viviam longe demais para voltarem todos os dias pra casa. O meu quarto era contíguo a uma sala de toalete e a uma pequena biblioteca, mas eu estava demasiadamente fatigado para ler. Agitado pelas peripécias deste estranho dia — o mais estranho que até ali passara em Ella —, fui obrigado a empregar o aparelho para fazer dormir.
Acordei muito cedo. O ar marinho era muito vivo e fresco e percebi que, ao contrário da casa de Souilik, esta possuía verdadeiras janelas, que tinham ficado abertas. Ouvia a ressaca do mar sobre as rochas da margem e o ligeiro rumor da brisa nos ramos das árvores. Descansei um momento na cama, os olhos abertos desfrutando o encanto daquela manhã elliana, tão calma.
De repente elevou-se um cântico.
Já muitas vezes tinha ouvido música hiss. Sem ser desagradável para nós, é muito elevada, muito intelectual. Este cântico não era um cântico hiss! Tinha nostalgia, a flexibilidade das melodias polinésicas, mas com maior amplitude. Tinha um ardor secreto que fazia pensar nas canções populares russas. E a voz, esta voz que passava sem esforço das notas baixas para as notas altas, não era, também, uma voz de Hiss! O cântico quebrava-se como as vagas do encontro da praia, com notas melodiosas voando rápidas e caindo fatigadas. O ser que cantava estava muito longe para que eu pudesse apanhar as palavras, que, provavelmente, não eram hiss. Mas eu sabia que esta canção falava de Primavera, de planetas esmagados por um sol ou afogados de nevoeiros, da coragem dos homens que os exploram, do mar, do vento, das estrelas, do amor e da luta, de mistério e de medo. Continha toda a juventude do mundo!