Com o coração a bater, vesti-me rapidamente, saltei pela janela. O cântico vinha da esquerda, do lado do mar. Passando através dos bosques, encontrei uma escada descendo para a margem. Frente ao mar, uma jovem cantava. O sol juntava os reflexos dourados na sua cabeça. Não podia então ser uma Hiss. A contraluz não podia distinguir a cor da sua pele. Estava vestida com uma curta túnica azul-pálida.
Precipitadamente, desci a escada a quatro e quatro, tão emocionado como quando, jovem estudante, via Sylvaine voltar a esquina da rua. Tropeçando no último degrau, caí, rolando a seus pés. Soltou um pequeno grito, cessou de cantar e deu uma gargalhada. Eu devia estar cômico, os cabelos cheios de areia, de gatinha, em frente dela. Depois o seu rir parou de repente e me perguntou num tom irritado:
— Asna éni étoé tan?
(Me voltei surpreendido. Estas últimas palavras não tinha sido Clair quem as pronunciara, mas Ulna, sua mulher).
— Sim — disse lentamente Clair —, era Ulna.
TERCEIRA PARTE: O QUE ESTÁ EM JOGO É O UNIVERSO
CAPÍTULO I
ULNA, A ANDROMEDANA
Me levantei lentamente, sem tirar os olhos da jovem. Durante um instante julguei que os Hiss tivessem feito uma nova viagem na Terra e tivessem trazido outros Terrestres. Depois me lembrei da enorme astronave, a estátua da Escadaria das Humanidades, e reparei naquela mão estreita. Me lembrei também das histórias de Souilik acerca dos Krens, do planeta Mara, quase indiscernível aos Hiss. Se estes últimos tinham os seus sósias, era possível que os homens tivessem os deles, A moça estava ainda na minha frente. Fiquei um momento mudo.
— Asna éni étoé tan, sanen tar téoé sen Telm! — disse ela então num tom colérico.
A voz dela continuava cantante e melodiosa. em francês:
— Je mexcuse, mademoiselle, de mon arrivée subite à vos pieds l Depois refleti que para ela estas palavras eram tão incompreensíveis como a sua pergunta para mim. Olhei-a então nos olhos e tentei «transmitir». Em vão. Ela me observava agora com desconfiança. Pousou a mão sobre uma fivela do. seu cinto.
Experimentei então em hiss, esperando que ela o compreendesse.
— Peço desculpa de ter lhe incomodado — disse. Reconheceu a língua em que eu me dirigira a ela e respondeu, colocando tão mal assentos tônicos como eu ao princípio:
Ssin tséhé k'on? (Quem é você?»).
A frase correta seria: «Sssin tséhé hion». Na realidade, a sua pergunta significava:
«Qual é o planeta?»
— Ari será o primeiro a brilhar esta noite — disse eu rindo.
Ela compreendeu o seu erro e pôs-se também a rir., Durante alguns minutos partilhamos do hiss, sem grande sucesso. Me mostrou então a escada e subimos para o terraço, revestido de madeira. Quando chegávamos ouvi os três assobios modulados que eram o sinal pessoal de Souilik. Ele apareceu, seguido de Essine.
Vejo que já tomou contacto com os Sinzus — me falou.
— Tomar contacto é maneira de dizer! Como fazem vocês quando aterram num planeta cujos habitantes não «recebem» e cuja língua ignoram? — É aborrecido, sobretudo quando são tão encantadores como esta Sinzu parece ser para você — disse Essine. — Mas descanse. Daqui a pouco vocês se entenderão.
— Sim — ajudou Souilik —, o problema foi resolvido desde há muito. Não se faça de orgulhoso: na realidade, somos nós que recebemos e que transmitimos! No seu próprio planeta você não poderia se corresponder com os seus semelhantes senão pela linguagem. As crianças, entre nós, estão no mesmo caso. Devem aprender. Você aprenderá e ela também. Enquanto isto, bastará um ligeiro capacete amplificador.
Aqui está o mais importante: cheguei esta noite dum universo situado ainda mais longe do que o de vocês, Isto quer dizer que, quando chegar o tempo, você poderá voltar para a sua terra. Tomei contacto com uma outra humanidade. No seu canto do Grande Universo parece que todos os seres têm o sangue vermelho: os Sinzus, vocês, os Tsériens, e os Zombs, que eu acabo de descobrir.
— Como são eles? Trouxe algum?
Souilik olhou para mim, um olho fechado:
— Eles se parecem um pouco com você. Aproximadamente duas vezes maiores.
Mas são ainda puros selvagens. Nem mesmo talham a pedra. Seria inútil e mesmo perigoso trazer um. Dentro de duzentos ou trezentos mil anos talvez…
Aproximávamo-nos da Escadaria das Humanidades. No alto alguns Hiss trabalhavam, rodeados de autômatos — Que diabo fazem os seus compatriotas? — perguntei a Souilik.
Em hiss, «que diabo» equivale exatamente a «teí mislik». — Trata-se de Milsliks, efetivamente — respondeu ele rindo.
Você verá — e voltando-se para a jovem Sinzu «transmitiu» qualquer coisa que não pude apanhar. Os Hiss podem sempre manter, por transmissão do pensamento, uma conversação privada, mesmo no meio de uma multidão. Devia ser engraçado, porque a jovem sorriu.
Subimos rapidamente a escada. Lá em cima o grupo dos Hiss dispersava-se. À direita erguia-se uma nova estátua. Tive a surpresa de me reconhecer, muito realisticamente esculpido, numa pose majestosa, o pé sobre um Mislik!
— Os seus encontros com o Mislik foram registrados, disse Essine. — E Ssilb, o nosso melhor escultor, recebeu imediatamente a missão de fazer esta estátua. Tinha as medidas exatas, tomadas na Casa dos Sábios quando examinaram, e, com algumas fotografias em relevo, isto foi uma brincadeira para ele Acha a estátua boa?
— Extraordinária — respondi sinceramente. vai me constranger, passar assim diante de mim os dias.
Souilik e a Sinzu conversavam há bocado e vi na cara do Hiss que alguma coisa corria mal. Trocou algumas palavras com Essine, muito depressa, para que eu não pudesse compreender bem. Me pareceu ouvir a palavra «injúria». A jovem Sinzu descia então a escada, ao encontro duma dezena de indivíduos da sua raça. Souilik tinha um ar apoquentado:
— Depressa, é preciso ver Assza, e mesmo Azzlem, se possível.
— O que se passa?
— Nada de grave. Pelo menos, assim o espero. Mas os Sinzus são podres de orgulho e fizemos mal em os pôr do lado esquerdo, na Escadaria!
Fomos introduzidos logo no gabinete de Azzlem. Encontrava-se em companhia de seu filho Asserok, um jovem Hiss, de regresso do universo dos Sinzus, e de Assza.
— A situação é perigosa — declarou abruptamente Souilik.
— Durante a minha ausência o Tsérien desceu na cripta da ilha Sanssine e venceu o Mislik! — Sim, e então? — disse Assza. Fui eu que tomei a responsabilidade, de acordo com o Conselho.
— Então, pelo que me disse Ulna, a Sinzu, tinha sido prometido aos Sinzus que seriam os primeiros seres de sangue vermelho a enfrentar o Mislik. Orgulhosos como eles parecem ser, é impossível que se conformem!
— A astronave deles está armada — interveio Asserok. E eles conhecem o ahun!
— Nós somos os senhores do nosso planeta, Asserok — respondeu Azzlem. — A primeira vez que os Sinzus vieram não quiseram enfrentar o Mislik. Pretextaram que precisavam de fazer preparativos. O Tsérien foi mais resoluto. Tanto pior para eles No fim de contas, foi a nós, Hiss, que a Promessa foi feita, e não aos Sinzus! Não devemos desprezar nenhuma ajuda, mas devemos conservar a liderança! E se os Sinzus têm armas, nós também temos!
Premiu um botão sobre a secretária. Um écran mural iluminou-se e vimos a Escadaria das Humanidades. Em frente da minha estátua, quatro Sinzus, um dos quais Ulna, discutiam. Os outros regressavam para a astronave correndo.
Azzlem pronunciou então palavras que não se tinham ouvido em Ella desde há numerosos séculos: