Ainda que pareça estranho, foi-me assaz fácil, mais tarde, comandar a astronave sinzu. No dizer dos Hiss e dos Sinzus, há diferenças no processo de atravessar o ahun — rr'oor, como lhe chamam os Sinzus.
Eles nem mesmo têm a certeza de que se trate do mesmo ahun! De fato, um ksill e uma astronave, navegando de conserva, e entrando simultaneamente no ahun, demorando-se lá o mesmo tempo, não saem juntos. A diferença pode ir até um quarto de ano luz, quando se trata de longas distâncias.
Me lembro perfeitamente de uma noite, por esta altura, em que, excepcionalmente, Souilik, Essine e eu ficamos na Casa dos Estrangeiros. Estávamos na praia, esperando Ulna e Akéion. Souilik informou-me oficialmente do seu próximo casamento com Essine, casamento do qual eu devia ser stéen-sétan, Ulna chegou sozinha e sentou-se junto de mim. O céu estava particularmente límpido e as estrelas brilhavam intensamente. Souilik interrogou-me sobre elas e eu designei Oriabor, de um amarelo-avermelhado, Schéssin-Siafan, vermelha, Béroé, azulada, as três da constelação de Sissantor, etc. — Não volte a cabeça: Qual é a estrela, grande, muito azul, que está exatamente, por detrás de você, mais ou menos a 30° acima do horizonte?
— Kalvénault — disse eu triunfante. E voltei-me para verificar. — Mas não a acho particularmente azul — acrescentei.
— Ah! Isso depende um pouco da sua posição — respondeu-me, sem sequer olhar. —
Fui uma vez a um planeta de Kalvénault, inabitado mas muito bonito.
Akéion chegou neste momento, acompanhado de alguns Sinzus, e nós mudamos de conversa.
Posteriormente pensei muitas vezes que tinha sido o primeiro a verificar a anormalidade de Kalvénault. De fato, tratando-se de uma estrela próxima — a menos de seis anos-luz —, e muito conhecida, era raramente observada pelos Hiss, tanto pelos astrônomos como pelos simples cidadãos.
O casamento de Souilik teve lugar cerca de dois meses ellianos depois desta noite.
Há duas espécies de casamentos em Ella. O mais simples se resume na presença dos noivos diante de um membro do registo civil. O segundo, mais complexo, faz-se segundo os antigos ritos. Era este o caso do de Souilik, pois ia casar com a filha do grão-mestre das emoções místicas.
Como eu era o stéen-sétan, dois jovens padres hiss vieram oito dias antes da cerimônia iniciar-me.
Na era das guerras proto-históricas acontecia frequentemente os casamentos entre tribos diferentes serem perturbados por guerreiros, que não aceitavam a partida da jovem da tribo. Por isso o noivo escolhia na própria tribo da noiva, ou em qualquer outra, mas nunca na sua, o stéen-sétan, encarregado de proteger os jovens recém— casados durante os três dias que duravam as cerimônias.
O stéen-sétan era quase sempre um guerreiro conhecido pelos seus feitos, um chefe influente ou um padre. Claro que agora já não se tratava de combates armados, mas a excitação das bebidas provocava por vezes verdadeiras batalhas.
Ainda por cima, a noiva não podia retirar-se nem um minuto, o que anularia o casamento. Souilik escolheu-me não só como amigo, mas também por causa da minha grande fôrça de terrestre. Recrutei onze fortes auxiliares entre os familiares de Essine.
Os primeiros ritos desenrolaram-se em casa de Essine e foram estritamente de caráter particular. Só assistiram os membros da família, os padres e eu, na minha qualidade de stéen-sétan. Foram muito simples e Souilik aborreceu-se durante as longas orações, mas Essine e os outros estavam realmente concentrados. Houve também cânticos arcaicos, mas sem aqueles graves e agudos que caracterizam a música contemporânea hiss. Acendeu-se uma chama verde — cor de sangue! — , que deveria estar acesa durante três dias. No segundo dia houve a cerimônia do juramento mútuo, em que os noivos se prometeram ajuda e proteção, mas não fidelidade, porque isso era a regra. Depois houve um pequeno banquete só para os íntimos. Foi somente no terceiro dia que o meu papel se tornou ativo.
Começou pela promessa às estrelas: os esposos comprometeram-se a educar os filhos no culto da Luz e no ódio aos Filhos da Noite e do Frio. Houve um intervalo de cinco horas, consagrado a oração, e finalmente o grande banquete.
Este teve lugar no Palácio do Casamento do distrito. Éramos mais de quatrocentos na mesa. Todo o pessoal científico dos laboratórios da Casa dos Sábios e mesmo alguns dos Sábios — grande honra, devida ao fato de Souilik ter descoberto uma raça de sangue vermelho. Assza também estava e informou-me de que o Mislik morrera.
Assistiram uma delegação de comandantes de ksill, com o ajudante de campo do «almirante», vinte e sete Sinzus, entre os quais Ulna e o irmão, e uma multidão de Hiss, conhecidos e desconhecidos. Vi com surpresa, na esquerda de Essine, a jovem de pele cor de pervinca.
Tratava-se de uma amiga dos tempos universitários, nascida em Réssan, que dava pelo encantador nome de Beichitinsiantorépanséroset. Safa!
Fiquei numa mesa junto da única porta, com os meus onze auxiliares. Usando do meu privilégio, convidei Ulna e o irmão para junto de mim.
Serviram-se variadíssimos pratos, todos com forma de geleias coloridas, dos quais alguns me pareceram deliciosos, outros medíocres ou até, francamente, maus. As bebidas eram igualmente variadas, fracamente alcoolizadas, de gosto muito variado para o meu paladar.
Quase ao fim do banquete, Zéran, o comandante-chefe da esquadrilha de ksills, ofereceu a Souilik o famoso «Aben— Torne» dos Krens, do planeta Mara.
Que cara ele fez quando foi obrigado a ingerir a bebida que tanto detestava! Pedi para a provar e fiquei agradavelmente surpreendido: parecia-se com um excelente e velho uísque! Ulna e Akéion foram da mesma opinião, e os três acabamos a garrafa, perante os olhares horrorizados dos Hiss.
Reinava franca alegria, como é hábito em qualquer reunião elliana. Supunha o meu papel terminado, sem ter de intervir, quando ouvi barulho lá fora.
Assza partira para a Casa dos Sábios, chamado por um trabalho urgente. Pela porta entreaberta chegou-nos um clamor. Me levantei imediatamente e reuni os meus auxiliares. Cerca de trinta jovens Hiss aproximavam-se, entoando uma antiga canção guerreira. Segundo a praxe, eles iam tentar entrar à fôrça e raptar a noiva.
Cumpria-me evitá-lo, por qualquer preço, durante meio basike.
A luta foi rija. Eles atacaram e foram recebidos com uma saraivada de golpes, em que a minha fôrça de terrestre fez maravilhas. Desde os antigos tempos de colégio, onde jogava rugby ao seu lado, como talonador, que eu não me divertia tanto! A luta continuou durante um quarto de basike, com diversas alternativas, mas o «inimigo» não conseguiu forçar a passagem. De repente, por cima das cabeças dos assaltantes, vi um réob aterrar a toda velocidade.
Um Hiss de grande estatura precipitou-se. Era Assza.
Correu para nós, gritando, mas o barulho impedia-me de o ouvir, e não transmitia porque estava longe. Mergulhei no meio da multidão, empurrando e gritando:
«Calem-se, calem-se!». Durante uns segundos de relativo silêncio consegui ouvir:
— Kalvénault vai se extinguir. Kalvénault vai se extinguir!
CAPÍTULO III
REGRESSO IMPOSSÍVEL
Então, abruptamente, fez-se um silêncio enorme.
Assza deu-nos depois algumas explicações: durante o banquete recebera um recado de Azzlem — que fosse rapidamente na Casa dos Sábios! Lá, Azzlem mostrara— lhe os espectrogramas recebidos do Observatório Central do monte Arana. Para um astrofísico a coisa era clara: Kalvénault mostrava o espectro das Galáxias Malditas.
Como o Palácio do Casamento não tinha telecomunicações, Assza retomou rapidamente o réob. Souilik levantou-se e aproximou-se lentamente.