Tendo acabado a nossa provisão de água no terceiro dia, fomos obrigados a fazer uma surtida. Escolhemos a ocasião em que apenas dois Milsliks estavam a vista. Saí em primeiro lugar e fulminei-os, Ulna encheu os sacos a transbordar de uma mistura de ar e de água sólida. Após grandes esforços, consegui abrir um dos cofres de metal das salas inferiores: continham pilhas de placas de metal, gravadas com signos que lembravam a escrita kmère. Transformamos o cofre em cisterna; na segunda surtida tivemos a felicidade de encontrar blocos de gelo de água pura e quase que pudemos encher o nosso reservatório. Foi uma sorte, porque logo em seguida os Milsliks estiveram sempre nas proximidades da cúpula em grande número.
Quando penso na acumulação fantástica de circunstâncias. felizes que nos permitiram sobreviver, pergunto a mim mesmo se não nos beneficiamos de uma proteção estranha especial. Mas, por outro lado, é evidente que, como os que não têm sorte não regressam para contar o que passaram — e são, incontestavelmente, os mais numerosos —, os que voltam são justamente aqueles que viram, por acaso ou doutra forma, as circunstâncias. favorecê-los, Contudo, na medida em que os dias decorriam, começava a duvidar da nossa sobrevivência. Por sua parte, Ulna perdera as esperanças há muito tempo. Ela, tão corajosa no combate, deixava-se dominar por uma tristeza fúnebre, devida em grande parte ao possível desaparecimento do irmão. Eu ficava desesperado ao vê-la cada vez mais pálida, de dia para dia; cada vez mais apática, mais fraca, também, porque quase não comia. Ficava longas horas junto a mim, segurando a minha mão. E se bem que conhecesse os sentimentos dela em relação a mim e ela os que eu lhe dedicava, não podíamos encontrar nisso nenhum conforto, porque a rígida educação sinzu proíbe, formalmente, qualquer palavra de amor quando o luto pesa sobre a família. Falar de amor a uma rapariga sinzu que acaba de perder um ente próximo é pior que uma grosseria: é uma obscenidade.
Um dia — se se pode falar em dia num planeta do Império das Trevas — estávamos sentados na cúpula. Alguns Milsliks cruzaram a luz da minha lâmpada. No céu luziam, debilmente, as manchas oblongas das galáxias distantes. Então, subitamente, uma luz deslumbrante jorrou algures no Espaço, passou sobre a cidade, recortando, em sombras chinesas, a silhueta das torres e dos altos edifícios.
Passou sobre a cúpula, forçando-nos a fechar os olhos com um grito de dor.
— Ulna, os Hiss! Os Hiss!
Febrilmente, ajudei-a a colocar o capacete e ajustei o meu.
Custasse o que custasse, era necessário assinalar a nossa presença. Introduzi na pistola uma vintena de «balas quentes», entreabri a porta e disparei. As «balas quentes», ao contrário das «balas mornas», que se limitavam a elevar a temperatura de algumas dezenas de graus acima do zero centígrado, produziam um calor de várias centenas de graus e uma luz viva. Varri um grupo de Milsliks a uma boa distância. — Quando esvaziei a minha pistola Ulna passou-me a dela. O projetor apontou sobre a planície, passou mais uma ou duas vezes sobre nós e, depois, fixou— se. Lentamente, segundo me parecia, mas, na realidade, tão depressa quanto a permitia a prudência, o engenho salvador descia. A luz do projetor refletia-se sobre o solo gelado, criando uma zona de penumbra, na qual vi, finalmente, a alguns metros de altura, uma enorme sombra fusiforme. Não era um ksill, mas sim uma astronave sinzu, o Tsalan!
— Os seus, Ulna!
Ela não me respondeu. Tombara no solo, desmaiada. Erguia-a nos braços e corri para a astronave, que, entretanto, pousava no meio de um nevoeiro de ar líquido borbulhante. Patinhei em massas semi-liquefeitas, tropecei num Mislik morto, cambaleei sem largar Ulna, Duas formas em escafandro seguraram-na e uma outra estendeu-me o braço, me guiando. Subimos a escada de bordo e, passando um compartimento estanque, encontrei-me no corredor do Tsalan, perante Souilik e Akéion.
A minha primeira reação foi incongruente: chamei Souilik à parte, dizendo-lhe que não devia ter vindo, pois era muito perigoso para os Hiss. Ele não se desconcertou, contentando-se em sorrir:
— Você nunca está contente! Era preciso vir para indicar o caminho!
— E Akéion? — perguntei.
— Akéion tinha se perdido, após a sua aventura. Daqui a pouco contará tudo a você.
Desembaraçaram-nos imediatamente dos escafandros. Ulna, ainda desmaiada, foi transportada para a enfermaria por onde, outrora, eu também já passara. Vincédon, o médico, imediatamente a observou, se bem que o caso, como disse, pudesse ser tratado por um estudante de medicina. Quando Ulna abriu os olhos saí com Souilik e o médico, deixando-a com o pai e o irmão.
Um quarto de hora mais tarde estávamos reunidos no posto de comando. O Tsalan estava já no ahun, ou, como dizem os Sinzus, no rr'oor, a caminho da galáxia dos Kaïens, onde Essine e Beichit nos aguardavam com os ksills. Akéion nos relatou então a sua extraordinária aventura.
Quando o edifício tombara sobre o Ulna-ten-Sillon ele tinha sido projetado, devido ao choque, contra uma parede e desmaiara. Ficou inconsciente durante três basikes.
Quando recuperou os sentidos depressa se deu conta de que estava prisioneiro nos escombros. Não se preocupou muito com o fato, visto que tinha ar e alimentos para muitas semanas. Mas ficou muito inquieto por nossa causa e começou logo a pensar no processo de se libertar para nos prestar socorro.
O casco tinha resistido bem e não se verificava nenhuma fuga de ar. Os motores funcionavam, mas foram impotentes para erguer a massa de destroços. É o inconveniente destes pequenos ksills. Muito rápidos e manejáveis, mas pouco potentes. Assim, apesar de perfeitamente consciente do perigo que corria, decidiu passar para o ahun e voltar em seguida ao planeta.
A manobra pareceu efetuar-se normalmente, salvo o aparelho ter sido mais sacudido que habitualmente. Mas quando fez, quase imediatamente, a manobra inversa, em vez de surgir no Espaço, relativamente próximo do planeta que acabava de abandonar, encontrou-se numa escuridão quase absoluta, que nem mesmo os radares sness podiam penetrar. Muito longe, demasiado esbatida, uma mancha luminosa devia assinalar uma galáxia, ou, melhor, um conjunto de galáxias.
Aqui o relato de Akéion foi interrompido por uma discussão técnica provocada por Souilik. Os Hiss exploram o ahun há mais tempo do que os Sinzus e possuem, relativamente a este fato, a mentalidade de um comodoro inglês em relação aos capitães de outras nações. Eis o que compreendi:
Dado que a passagem se efetuara, não no vácuo, como de costume, mas na superfície de um planeta, a impulsão (?) tinha sido muito mais forte. A parcela de espaço tinha sido completamente deslocada do nosso universo e, atravessando o ahun se o verbo «atravessar» tem um sentido para o não-espaço —, fora parar num dos universos negativos que encerram o nosso, tal como o pão de um sanduíche encerra o presunto.
Akéion surgiu, portanto, no Espaço de um universo negativo e, felizmente para ele, longe de qualquer concentração de matéria. Por um momento ficou sem compreender onde estava. De vez em quando o contador de radiações crepitava e a agulha assinalava uma brusca presença de raios penetrantes. Estes contadores servem para indicar as regiões do Espaço onde a densidade dos raios cósmicos é perigosa. Mas a irradiação recebida não tinha nenhuma das características da radiação cósmica habitual. De resto, deveria ser aqui muito fraca, devido a distância a que o universo estava de qualquer galáxia.
— De repente — acrescentou Akéion — compreendi. Me recordei de um curso, que outrora frequentara, sobre a possibilidade teórica de universos negativos e suas consequências. A irradiação que registrava devia ser originada por alguns raros átomos de matéria negativa que, em contacto com a matéria positiva do ksill, se anulavam em protões ultra-resistentes Estava arriscado a encontrar, de um momento para o outro, uma zona do Espaço onde a matéria negativa estivesse mais concentrada, e, então, adeus todos os universos! Febrilmente, Akéion consultou o registrador de curva especial, o crono— espaciômetro, o registrador de superfície-limite e todos os aparelhos complicados que servem para a navegação espacial no ahun. Com a condição de calcular bem a impulsão, tinha ainda alguma probabilidade de reencontrar o nosso universo. Ainda que valente e de temperamento calmo, estava descontrolado. Tente imaginar esta situação: perdido num universo ainda mais estranho do que os dos Milsliks, a mercê de um aniquilamento flamejante em cada segundo. E, para ritmar estes pensamentos, o batimento quase ininterrupto do contador de radiações!