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— Não estou com muita fome, papai.

— Quase não tem gordura.

— Não. Mas obrigado mesmo assim.

— Ah.

Lezek suspirou. Pulou um pouco para dar vida aos pés e assobiou sem afinação. Sentia-se na obrigação de dizer alguma coisa, oferecer um conselho, salientar que a vida tinha seus altos e baixos, botar o braço em torno do ombro do filho e conversar extensivamente sobre os problemas da vida, mostrar — em resumo — que o mundo é um lugar antigo e estranho em que não deveríamos jamais, metaforicamente falando, ser tão orgulhosos a ponto de recusar um bolo de carne tão perfeito e bom.

Agora estavam sozinhos. A geada, última do ano, aferrava-se cada vez mais ao chão de pedras.

No alto da torre, uma roda dentada fez “bum”, desengatou uma alavanca, soltou um trinco e deixou cair um peso de chumbo. Houve um terrível chiado metálico, e as portinholas no mostrador do relógio se abriram, liberando os homenzinhos mecânicos. Agitando os martelos como se sofressem de artrite robótica, eles começaram a anunciar o novo dia.

— Bom, é isso — disse Lezek.

Eles teriam de achar algum lugar para dormir. Réveillon dos Porcos não era época de andar pelas montanhas. Talvez houvesse um estábulo em algum lugar...

— Só é meia-noite no último toque — objetou Mort, com frieza.

Lezek encolheu os ombros. A persistência de Mortimer o estava vencendo.

— Tudo bem — disse. — Vamos esperar.

E então ouviram o pocotó a ressoar na praça fria, bem mais alto do que a acústica comum deveria permitir. Aliás, pocotó era uma palavra absurdamente incorreta para o tipo de barulho que vibrava ao redor de Mortimer. Pocotó sugere um pequeno pônei alegre, muito possivelmente usando chapéu de palha com furos para as orelhas. Este som aqui deixava claro que chapéus de palha estavam fora de questão.

O cavalo entrou na praça pela estrada que vinha do Centro, com vapor se desprendendo dos enormes flancos brancos e úmidos, e faíscas saltando do chão. Trotava com elegância, como um cavalo de batalha. Decididamente não usava nenhum chapéu de palha.

O vulto alto em seu dorso estava bem agasalhado contra o frio. Quando o animal alcançou o meio da praça, o cavaleiro desceu, devagar, e mexeu em qualquer coisa atrás da sela. Então trouxe à vista uma cevadeira, prendeu-a as orelhas do bicho e deu-lhe um tapinha no pescoço.

O ar adquiriu uma textura espessa, oleosa, e as sombras ao redor de Mortimer viraram arco-íris roxos e azuis. O cavaleiro avançou na direção dele, com a capa preta a se agitar e os pés a estalarem no chão. Esses eram os únicos sons: o silêncio caiu sobre a praça como grandes montes de algodão.

O efeito geral só foi comprometido por um trecho de gelo escorregadio.

— AH, DROGA.

Não era exatamente uma voz. As palavras sem dúvida estavam ali, mas chegavam à mente de Mortimer sem se incomodar em passar pelos ouvidos.

Ele correu para ajudar o vulto caído e se descobriu pegando um braço que não passava de osso, liso e amarelado como uma velha bola de bilhar. O capuz escorregou para trás, e uma caveira voltou suas cavidades oculares vazias para ele.

Nem tão vazias assim, porém. Bem no fundo, como se fossem janelas que davam para os precipícios do espaço, havia duas minúsculas estrelas azuis.

Ocorreu a Mortimer que ele deveria estar horrorizado. E então ficou ligeiramente chocado ao ver que não estava. Era um esqueleto que se encontrava ali sentado, diante dele, esfregando os joelhos e resmungando. Estava vivo, e era curiosamente impressionante, mas, por alguma estranha razão, não muito assustador.

— OBRIGADO, GAROTO — disse a caveira. — QUAL O SEU NOME?

— Hã — soltou Mort. — Mortimer... senhor. Mas me chamam de Mort.

— QUE COINCIDÊNCIA! — exclamou a caveira. — AJUDE AQUI, POR FAVOR.

Ele se levantou com dificuldade, limpando a roupa. Agora Mortimer podia ver que havia um cinto pesado em torno da cintura, de onde pendia uma espada de punho branco.

— Espero que o senhor não tenha se machucado — arriscou, com educação.

O esqueleto sorriu. É claro, pensou Mortimer, que ele não tem muita escolha.

— ESTÁ TUDO BEM.

A caveira olhou ao redor e pareceu ver Lezek, que dava mostras de estar congelado, pela primeira vez. Mortimer achou que se fazia necessária uma explicação.

— Meu pai — disse, tentando se mover protetoramente para frente dele sem causar nenhum agravo. — Desculpe, mas o senhor é aquele cara que traz a morte?

— QUASE, GAROTO. MAIS PRECISAMENTE, EU SOU O “SENHOR” MORTE. MAS FOI MUITO PERSPICAZ DA SUA PARTE.

Mortimer engoliu em seco.

— Meu pai é um homem bom — observou ele. Pensou por um momento e acrescentou: — Se não for incômodo, eu preferia que o senhor o deixasse em paz. Não sei o que fez com ele, mas gostaria que parasse. Sem querer ofender.

Morte recuou, virando a cabeça de lado.

— EU SÓ NOS TROUXE PARA FORA DO DOMÍNIO DO TEMPO POR UM INSTANTE — JUSTIFICOU. — ELE NÃO VAI VER NEM OUVIR NADA QUE POSSA INCOMODÁ-LO. NÃO, GAROTO FOI POR VOCÊ QUE EU VIM.

— Por mim?

— NÃO ESTÁ PROCURANDO EMPREGO?

Mortimer entendeu o que se passava.

— O senhor está atrás de um aprendiz? — perguntou.

As cavidades oculares se voltaram para ele, com as pontinhas actínicas cintilando.

— CLARO.

Morte agitou a mão de osso. Houve uma explosão de luz roxa, uma espécie de “bum” visível, e Lezek descongelou. Sobre sua cabeça, os homenzinhos mecânicos continuavam o trabalho de anunciar a meia-noite, uma vez que o Tempo pôde enfim voltar a correr.

Lezek piscou os olhos.

— Não vi você chegar — desculpou-se. — Sinto muito... devia estar com a cabeça em outro lugar.

— EU ESTAVA OFERECENDO UM CARGO AO SEU FILHO — informou Morte. — CONTO COM SUA APROVAÇÃO?

— Qual é mesmo o seu trabalho? — perguntou Lezek, encarando o esqueleto vestido de preto sem revelar a menor sombra de espanto.

— CONDUZO ALMAS PARA O PRÓXIMO MUNDO — respondeu Morte.

— Ah — soltou Lezek. — É claro, desculpe, eu já deveria ter adivinhado pelas roupas. Um trabalho muito interessante, bastante estável. O negócio é sólido?

— JÁ ESTOU NELE HÁ ALGUM TEMPO — considerou Morte.

— Excelente. Nunca pensei nisso como trabalho para o Mort, mas é uma boa profissão, uma boa profissão, bastante segura. Qual é o seu nome?

— MORTE.

— Papai... — interveio Mort.

— Nunca ouvi falar da empresa — considerou Lezek. — Onde fica?

— DAS PROFUNDEZAS DO MAR A ALTURAS QUE NEM AS ÁGUIAS PODEM ALCANÇAR — respondeu Morte.

— Nada mal — considerou Lezek. — Bem, eu...

— Papai — insistiu Mort, puxando o casaco de Lezek. Morte pôs a mão no ombro do menino.

— O QUE SEU PAI VÊ E ESCUTA NÃO É O QUE VOCÊ VÊ E ESCUTA — explicou. — NÃO O DEIXE PREOCUPADO. ACHA QUE ELE GOSTARIA DE ME VER... EM CARNE E OSSO, SE FOSSE O CASO?

— Mas o senhor é o Morte — retrucou Mort. — Sai por aí matando as pessoas!

— EU? MATAR? — indignou-se Morte, notadamente ofendido. — CLARO QUE NÃO. AS PESSOAS SÃO MORTAS, E ISSO É PROBLEMA DELAS. EU SÓ ASSUMO O COMANDO A PARTIR DAÍ. AFINAL, SERIA UM MUNDO BASTANTE IDIOTA SE AS PESSOAS FOSSEM MORTAS SEM MORRER, NÃO É MESMO?

— Bem, é... — admitiu Mort, hesitante.

Mortimer jamais ouvira a palavra “intrigado”. Ela não fazia parte do vocabulário da família. Mas uma centelha em sua alma dizia que ali estava um negócio estranho, fascinante e não completamente pavoroso, e que, se ele deixasse aquele momento escapar, passaria o resto da vida arrependido. Então lembrou as humilhações do dia e a longa caminhada de volta para casa...