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— Ajudar? — rebateu Keli. — Ajudar? Se não fosse por você...

— Você ainda estaria morta — cortou Mort. Ela o fitou boquiaberta.

— Mas não saberia de nada — considerou. — Essa é a pior parte.

— Acho melhor vocês dois saírem — sugeriu Cortabem para os guardas, que vinham tentando parecer invisíveis. — Mas eu fico com a lança, por favor. Obrigado.

— Olhe — disse Mort. — Tenho um cavalo lá fora. Você vai ficar admirada. Posso levá-la a qualquer lugar. Não precisa esperar aqui.

— Você não entende muito de monarquia, não é? — gracejou Keli.

— Hã? Não.

— Ela quer dizer que mais vale ser uma rainha morta no castelo do que uma plebéia viva em qualquer outro lugar — explicou Cortabem, que enfiara a lança na parede, perto da flecha, e vinha tentando puxá-la. — De qualquer maneira, não adiantaria. A abóbada não está centrada no palácio, está centrada na menina.

— Em quem? — perguntou Keli.

A voz poderia manter leite fresco durante um mês.

— Em Sua Alteza — emendou Cortabem automaticamente, comprimindo os olhos para a seta.

— Não se esqueça disso.

— Não vou esquecer, mas a questão não é essa — salientou o mago.

Ele tirou a flecha do reboco e sentiu a ponta com o dedo.

— Se você ficar aqui, vai morrer! — adiantou-se Mort.

— Então mostrarei ao Disco como morre uma rainha — disse Keli, com o máximo de altivez possível quando se está de pijama de tricô rosa.

Mort sentou na cama, com a cabeça nas mãos.

— Eu sei como morre uma rainha — murmurou. — Igual às outras pessoas. E alguns de nós preferem não ver isso acontecer.

— Com licença, só quero dar uma olhada nessa balista — interveio Cortabem, passando por eles. — Não se incomodem comigo.

— Irei com orgulho ao encontro do meu destino — alardeou Keli, mas havia um leve tremor de incerteza em sua voz.

— Não vai, não. Quer dizer, eu sei do que estou falando. Acredite em mim. Não tem nada do que se orgulhar nisso. Você só morre.

— Tudo bem, mas a questão é como. Vou morrer com nobreza, exatamente como a rainha Ezeriel.

A testa de Mortimer se franziu. A História era um livro fechado para ele.

— Quem é ela?

— Viveu em Klatch, teve uma porção de amantes e uma vez sentou numa cobra — informou Cortabem, que agora esticava a balista.

— Ela quis! Estava apaixonada!

— Só lembro que costumava tomar banho com leite de asno. Engraçada, a História — observou Cortabem, meditativamente. — A mulher vira rainha, reina durante trinta anos, cria leis, declara guerra aos povos e a única coisa pela qual é lembrada é que cheirava a iogurte e tinha sido picada na...

— Ela é uma antepassada distante minha — cortou Keli. — Não vou ouvir esse tipo de coisa.

— Vocês querem ficar quietos e me escutar! — gritou Mort. O silêncio caiu como uma mortalha.

Então Cortabem mirou com cuidado e atirou nas costas de Mortimer.

A noite deixava para trás os primeiros desastres e seguia adiante. Mesmo as festas mais loucas haviam terminado, com os convidados se arrastando para a própria cama, ou para a cama alheia. Em meio a esses viajantes — meros seres do dia desviados de sua rotina cotidiana —, os verdadeiros sobreviventes da noite se entregavam ao importante comércio das trevas.

Não era muito diferente das transações diurnas de Ankh-Morpork, à exceção de que as facas ficavam mais óbvias e as pessoas não riam tanto.

O bairro conhecido como As Sombras estava mergulhado em silêncio, salvo pelos sinais assobiados de ladrões e pela quietude abafada de dezenas de pessoas levando seus negócios privados à surdina.

E no Beco do Presunto o famoso jogo bosta flutuante de Coxo Wa seguia seu curso. Dezenas de vultos encapuzados se encontravam ajoelhados ou agachados ao redor do pequeno círculo de terra batida onde os três dados de oito lados de Wa rolavam e ministravam sua enganosa aula de probabilidade estatística.

— Três!

— Por Io, Olhos de Tuphal!

— Montanha, ele pegou você! Esse cara sabe jogar!

— É DOM.

Montanha M'guk — o homem baixo de rosto achatado, natural de uma das tribos de Centrolândia, cujo talento com os dados era notório onde quer que dois homens se juntassem para trapacear um terceiro — pegou os dados e estudou-os. Em silêncio, xingou Wa — cujo próprio dom em mudar os dados era do mesmo modo famoso entre os entendidos, embora aparentemente não houvesse funcionado naquele momento —, desejou uma morte prematura e dolorosa ao jogador sentado à frente e lançou as peças no chão.

— Vinte e um!

Wa pegou os dados e entregou-os ao desconhecido. Ao se virar para Montanha, um dos olhos se mexeu de leve. Montanha ficou impressionado: mal notara o movimento dos dedos enganosamente torcidos de Wa, apesar de estar observando com atenção.

Era desconcertante o modo como os cubos chacoalharam na mão do desconhecido e então se atiraram num arco demorado que terminou com os 24 pontinhos virados para as estrelas.

Alguns dos homens mais vividos do grupo se afastaram do desconhecido, porque sorte assim podia ser um azar no jogo bosta flutuante de Coxo Wa.

A mão de Wa se fechou sobre os dados com um barulho semelhante ao estalo de um gatilho.

— Todos os oitos — suspirou. — Meu senhor, é um mistério tanta sorte.

O resto do grupo evaporou feito sereno, deixando apenas aqueles indivíduos de constituição robusta e fisionomia truculenta, que, se Wa pagasse imposto, teria declarado como Aparelhos Essenciais e Equipamento de Trabalho.

— Talvez não seja sorte — acrescentou ele. — Talvez seja magia.

— ESTOU FICANDO OFENDIDO.

— Uma vez, tivemos um mago que queria ficar rico — disse Wa — Não consigo lembrar o que aconteceu com ele. Rapazes?

— Tivemos uma conversa com o cara...

— ... e o deixamos na Viela dos Porcos...

— ... e na Estrada do Mel...

— ... e em alguns outros lugares de que não me lembro.

O desconhecido se levantou. Os rapazes se aproximaram.

— NÃO TEM NECESSIDADE DISSO. EU SÓ QUERIA APRENDER. QUE PRAZER O SER HUMANO PODE ENCONTRAR NUMA SIMPLES CONFIRMAÇÃO DAS LEIS DO ACASO?

— Aqui o acaso não tem vez. Vamos dar uma geral nele, rapazes. Os acontecimentos que se seguiram não seriam lembrados por viva'lma, afora a que pertencia a um gato selvagem — um dos milhares da cidade — que vinha cruzando o beco a caminho de um encontro. Ele parou e observou com atenção.

Os homens se congelaram em pleno ato de apunhalar. Aflitivas luzes roxas tremeluziram à volta. O desconhecido tirou o capuz e pegou os dados, então botou-os na mão inerte de Wa. O homem abria e fechava a boca, forçando os olhos para não ver o que se encontrava à sua frente. Sorrindo.

— JOGUE.

Wa conseguiu olhar a própria mão.

— Qual é a aposta?

— SE VOCÊ GANHAR, VAI PARAR COM ESSA TENTATIVA RIDÍCULA DE SUGERIR QUE O ACASO REGE A VIDA DOS HOMENS.

— Está bem. Está bem. E... se eu perder?

— VAI DESEJAR TER GANHADO.

Wa tentou engolir, mas a garganta estava seca.

— Eu sei que mandei matar muitas pessoas...

— VINTE E TRÊS, PARA SER EXATO.

— É tarde demais para me arrepender?

— ESSAS COISAS NÃO ME DIZEM RESPEITO. AGORA JOGUE OS DADOS.

Wa fechou os olhos e atirou as peças no chão, nervoso demais para tentar o especial lançamento de “agito e giro”. Manteve os olhos fechados.

— TODOS OS OITOS. PRONTO. NÃO FOI TÃO DIFÍCIL, FOI?

Wa desmaiou.