— NÃO VEJO SENTIDO — disse o desconhecido.
— Como?
— O QUE DEVERIA ACONTECER?
— Quantas bebidas você tomou?
— QUARENTA E SETE.
— Então qualquer coisa — respondeu o barman e, por conhecer o trabalho e saber o que se esperava dele quando se bebe sozinho em plena madrugada, começou a lustrar um copo com o pano de prato e perguntou: — A patroa botou você para fora?
— PERDÃO?
— Afogando as mágoas?
— NÃO TENHO MÁGOAS.
— Não, claro que não. Esqueça o que falei. — Ele esfregou o copo um pouco mais. — Só achei que talvez ajudasse ter com quem conversar.
Por um instante, o desconhecido permaneceu em silêncio, matutando. Então perguntou:
— QUER CONVERSAR COMIGO?
— Quero, sim. Claro. Sou um ótimo ouvinte.
— NUNCA NINGUÉM QUIS CONVERSAR COMIGO.
— Que pena!
— NUNCA ME CONVIDAM PARA AS FESTAS.
— Tch.
— TODOS ME DETESTAM. NÃO TENHO NENHUM AMIGO.
— Todo mundo precisa de amigo — disse o barman, com ares de sabedor.
— EU ACHO...
— Sim?
— ACHO... QUE POSSO FICAR AMIGO DA GARRAFA VERDE.
O dono do bar empurrou a garrafa octogonal pelo balcão. Morte pegou-a e inclinou-a sobre o copo. A bebida retiniu na borda.
— VOCÊ BÊBADO QUE EU ESTOU ACHA, NÃO É?
— Sirvo a qualquer pessoa que consiga ficar de pé.
— VOCÊ ESSSHTÁ TOTAAALMENTE CEERRRTO. MAS EU. ..
O desconhecido se deteve, com um dedo declamatório em riste.
— O QUE EU DIZIA?
— Que eu achava que você estava bêbado.
— AH, SIM. MAS POSSO FICAR SÓBRIO A HORA QUE EU QUISER, ISSO É SSSSSÓ UMA EXPERIÊNCIA. E AGORA EU GOOOSSSHTARIA DE EXPERIMENTAR A AGUARDENTE LARANJA OUTRA VEZ.
O dono da taberna suspirou e deu uma olhada no relógio. Não havia dúvida de que estava ganhando muito dinheiro, principalmente porque o desconhecido não parecia disposto a se preocupar com preço de mais e troco de menos. Mas estava ficando tarde. Na verdade, estava ficando tão tarde que já era cedo. Também havia qualquer coisa no cliente solitário que o deixava incomodado. Na Tambor Consertado, as pessoas em geral bebiam como se não houvesse amanhã, mas aquela era a primeira vez que ele tinha a sensação de que podiam estar certas.
— QUER DIZER, O QUE POSSO ESPERAR DO FUTURO? ONDE ESTÁ O SENTIDO DISSO TUDO? QUAL É?
— Não sei, amigo. Acho que você vai se sentir melhor depois de dormir um pouco.
— DORMIR? DORMIR? EU NUNCA DURMO. SOU FAMOSO POR ISSO.
— Todo mundo precisa dormir. Até eu — sugeriu ele.
— TODOS ME ODEIAM, SABIA?
— É, você falou. Mas são quinze para as três.
O desconhecido se virou cambaleante e correu os olhos pela taberna vazia.
— SÓ SOBRAMOS VOCÊ E EU — disse.
O barman contornou o balcão para ajudar o desconhecido a descer do tamborete.
— NÃO TENHO NENHUM AMIGO. ATÉ OS GATOS ME ACHAM ESTRANHO.
Ele estendeu o braço e pegou uma garrafa de Aguardente Amanita antes que o homem conseguisse empurrá-lo até a porta, perguntando-se como alguém tão magro podia pesar tanto.
— NÃO PRECISO FICAR BÊBADO. POR QUE AS PESSOAS GOSTAM DE FICAR BÊBADAS? É DIVERTIDO?
— Ajuda a esquecer a vida, meu velho. Agora se segure aí enquanto eu abro a porta...
— ESQUECER A VIDA. AH! AH!
— Volte sempre que quiser, ouviu?
— GOSTARIA MESMO DE ME VER DE NOVO?
O dono do bar olhou o montinho de moedas sobre o balcão. Aquilo valia um pouco de maluquice. Pelo menos, esse ali era tranqüilo e parecia inofensivo.
— Ah, claro — respondeu, empurrando o desconhecido para a rua e recuperando a garrafa num único movimento suave. — Apareça uma hora dessas.
— FOI A COISA MAAAIS GENTIL...
A porta se fechou para o resto da frase.
Ysabell sentou na cama.
As batidas se repetiram, macias e urgentes. Ela puxou os cobertores até o queixo.
— Quem é? — perguntou, num sussurro.
— Sou eu, Mort — veio o murmúrio do outro lado da porta. — Deixe-me entrar, por favor!
— Espere!
Ysabell vasculhou a mesinha de cabeceira atrás de fósforos, derrubando um vidro de água-de-colônia e empurrando uma caixa de chocolates que agora mais tinha papéis amassados do que bombons propriamente ditos. Quando conseguiu acender a vela, ajustou sua posição para obter o máximo de efeito, puxou a camisola a fim de mostrar algo mais revelador e disse:
— Não está trancada.
Mortimer entrou no quarto, cheirando a cavalo, sereno e esfuminho.
— Espero — disse Ysabell, maliciosamente — que você não tenha forçado passagem até aqui para tirar vantagem de sua situação na família.
Mortimer olhou ao redor. Ysabell era aficionada por babados. Até a penteadeira parecia estar usando anágua. O quarto inteiro parecia antes adornado com lingerie do que mobiliado.
— Olhe, não tenho tempo para brincadeiras — avisou ele. — Traga a vela para a biblioteca. E, pelo amor de Deus, vista alguma coisa decente. Você está transbordando.
Ysabell olhou para baixo, e então sua cabeça se ergueu.
— E daí?
Mortimer voltou a enfiar o rosto no vão da porta.
— É uma questão de vida ou morte — acrescentou, e desapareceu. Ysabell viu a porta se fechar, revelando o robe com borlas que Morte havia lhe dado de presente no último Réveillon dos Porcos e que ela não tivera coragem de jogar fora, apesar de ser um número menor do que o seu e ter um coelho no bolso.
Por fim, desceu da cama, vestiu o robe infame e saiu para o corredor. Mortimer a aguardava.
— Papai não vai nos ouvir? — alarmou-se ela.
— Ainda não chegou. Vamos.
— Como é que você sabe?
— A casa fica diferente quando ele está aqui. É... é como a diferença entre o casaco que está sendo usado e o que se encontra pendurado no cabide. Você não percebe?
— O que estamos fazendo de tão importante?
Mortimer abriu a porta da biblioteca. Saiu uma lufada de ar quente e seco, e as dobradiças soltaram um rangido de protesto.
— Vamos salvar a vida de uma pessoa — informou ele. — Aliás, de uma princesa.
Ysabell de pronto se mostrou fascinada.
— Uma princesa de verdade? Ela só anda com sapatinhos de cristal?
— Se ela anda... ? — Mort sentiu uma ligeira preocupação desaparecer. — Ah, sim. Achei mesmo que Albert tivesse se enganado.
— Está apaixonado por ela?
Mortimer se deteve entre as estantes, ciente do diligente chiado no interior das capas dos livros.
— Não tenho certeza — respondeu. — Pareço estar?
— Parece um pouco transtornado. O que ela sente por você?
— Não sei.
— Ah — disse Ysabell, com ar de profunda entendedora. — O amor não correspondido é o pior tipo. Mas provavelmente não é boa idéia sair tomando veneno ou se matando — acrescentou, pensativa. — O que estamos fazendo aqui? Quer achar o livro dela para saber se casa com você?
— Já li, e ela está morta — disse Mort. — Mas só tecnicamente. Quer dizer, não de fato.
— Que bom, do contrário seria necromancia! O que estamos procurando?
— A biografia do Albert.
— Para quê? Acho que ele não tem.
— Todo mundo tem.
— Bem, ele não gosta que ninguém lhe faça perguntas pessoais. Uma vez, procurei o livro mas não achei. E o Albert não valia o sacrifício de insistir. Por que ele é tão importante?
Ysabell acendeu duas velas com a que estava na mão e encheu a biblioteca de sombras dançantes.