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Havia templos de portas abertas, enchendo a rua com o som de gongos, sinos e, no caso das religiões fundamentalistas mais conservadoras, os breves gritos de suas vítimas. Havia lojas cujas estranhas mercadorias chegavam ao chão da calçada. Parecia haver muitas jovens simpáticas sem dinheiro para se vestir. Havia tochas, malabaristas e vendedores de transcendência instantânea.

E Morte avançava em meio a tudo aquilo. Mortimer esperara vê-lo passar pelas pessoas como fumaça, mas não era assim que acontecia. A verdade nua e crua é que, por onde Morte andava, os indivíduos se desviavam.

O mesmo não se dava com Mortimer. A multidão que suavemente se abria para seu novo mestre tratava de se fechar bem a tempo de ficar no caminho dele. Os dedos dos pés foram esmagados, as costelas se viram contundidas, algumas pessoas tentaram lhe vender ervas desagradáveis e vegetais de formas sugestivas, e, por mais estranho que pareça, uma senhora já de idade disse que ele parecia um rapaz cheio de vida à procura de diversão.

Ele agradeceu muito e respondeu que já estava se divertindo à beça.

Morte alcançou a esquina da rua — a luz das tochas erguendo raios brilhantes no cocuruto lustroso de sua cabeça — e fungou o ar. Um bêbado se aproximou cambaleante e, sem nenhum motivo aparente, fez um leve desvio no caminho irregular que traçava.

— ISTO SIM É QUE É CIDADE — anunciou Morte. — O QUE ACHA?

— Muito grande — respondeu Mort, hesitante. — Quer dizer, por que todo mundo prefere viver apertado assim?

Morte deu de ombros.

— EU GOSTO — afirmou. — É CHEIA DE VIDA.

— Senhor?

— HÃ?

— O que é curry?

As chamas azuis se acenderam nos olhos de Morte.

— JÁ MORDEU PEDRA DE GELO QUENTE?

— Não, senhor — admitiu Mort.

— CURRY É IGUAL.

— Senhor?

— HÃ?

Mortimer engoliu em seco.

— Desculpe, senhor, mas meu pai disse que, se eu tivesse alguma dúvida, deveria perguntar.

— MUITO LOUVÁVEL — considerou Morte.

Então partiu por uma rua lateral, com as pessoas abrindo caminho feito moléculas desordenadas.

— Bem, senhor, eu não pude deixar de notar, a verdade é que, bom, o fato puro e simples, senhor, é...

— VAMOS COM ISSO, GAROTO.

— Como o senhor consegue comer?

Morte parou de repente, de modo que Mortimer andou dentro dele. Quando o menino começou a falar, o mestre acenou para que se calasse. Parecia estar ouvindo alguma coisa.

— SABE? TEM HORAS — disse, quase para si mesmo — EM QUE FICO COM MUITA RAIVA.

Ele se virou e avançou às pressas por um beco, com a capa a se agitar. O beco serpenteava por entre muros escuros e prédios adormecidos — mais um corredor sinuoso do que uma via pública de fato.

Morte se deteve ao lado de um velho barril e mergulhou o braço na água, voltando com um pequeno saco preso a um tijolo. Sacou a espada — uma linha de reluzente chama azul na escuridão — e partiu a corda.

— FICO COM MUITA RAIVA MESMO — ressaltou.

Endireitou o saco, e Mortimer pôde ver os tristes pedaços de pele animal encharcada deslizarem para o chão de pedras. Morte esticou os dedos brancos e acariciou-os com delicadeza.

Depois de um tempo, uma espécie de fumaça cinza começou a se desprender dos filhotes e formar três pequenas nuvens em forma de gato. Os bichanos cresceram, ainda incertos de suas dimensões, e piscaram para Mortimer com intrigados olhos cinza. Quando o menino arriscou tocar um deles, a mão passou direto pelo corpo e formigou.

— NESTE TRABALHO, VEMOS O PIOR DAS PESSOAS — lamentou Morte.

Ele soprou um gatinho, fazendo-o dar cambalhota. O miado de protesto ecoou como se viesse de longe, através de um longo tubo de lata.

— São almas, não são? — admirou-se Mort. — Como fica a gente?

— EM FORMA DE GENTE — respondeu Morte. — TUDO SE RESUME AO CAMPO MORFOGÊNICO CARACTERÍSTICO.

Ele soltou um suspiro parecido com o som de uma mortalha açoitada pelo vento, pegou os filhotes no ar e guardou-os com cuidado em algum misterioso esconderijo do manto. Então ficou de pé.

— HORA DO CURRY! — disse, afinal.

Na esquina da Rua de Deus com o Beco Sangrento, o Jardins de Curry estava lotado, mas apenas com a nata da sociedade — ou, ao menos, com as pessoas que se acham flutuando no topo e a quem, portanto, é melhor chamarmos de nata. Flores perfumadas plantadas entre as mesas quase encobriam o odor natural da própria cidade, que já foi citado como o equivalente nasal da buzina de nevoeiro.

Mortimer comeu com avidez, mas dominou a curiosidade e não ficou olhando para ver como Morte podia abocanhar o que quer que fosse. Primeiro a comida estava ali e depois não estava, então presumiu que alguma coisa devia ter acontecido com ela. Mortimer teve a sensação de que Morte não estava de fato acostumado àquilo tudo, mas vinha fazendo o possível apenas para deixá-lo à vontade, como o tio solteirão que recebe o sobrinho para o feriado e morre de medo de que tudo dê errado.

Os outros clientes não pareciam prestar muita atenção, mesmo quando Morte se recostou na cadeira e acendeu um cachimbo. É difícil ignorar alguém que exala fumaça pelas órbitas dos olhos, mas todos conseguiram.

— É magia? — perguntou Mort.

— O QUE VOCÊ ACHA? — rebateu Morte. — ESTOU REALMENTE AQUI, GAROTO?

— Está — respondeu Mort, devagar. — Eu... fiquei observando as pessoas. Elas olham mas não vêem, eu acho. O senhor faz alguma coisa na mente delas?

Morte sacudiu a cabeça.

— ELAS MESMAS FAZEM — corrigiu — NÃO TEM MAGIA NENHUMA. AS PESSOAS NÃO PODEM ME VER PORQUE NÃO SE PERMITEM. ATÉ QUE SEJA HORA, É CLARO. OS MAGOS ME ENXERGAM, E OS GATOS. MAS O HOMEM COMUM... NÃO, NUNCA.

Ele soprou um anel de fumaça para o céu e acrescentou:

— PODE PARECER ESTRANHO, MAS É A MAIS PURA VERDADE.

Mortimer observou o anel de fumaça flutuar para o alto e se afastar na direção do rio.

— Eu vejo o senhor — objetou Mort.

— É DIFERENTE.

O garçom klatchiano chegou com a conta e colocou-a na frente de Morte. O homem era moreno e atarracado — com o corte de cabelo parecendo um coco —, e o rosto redondo se abriu num sorriso intrigado quando Morte educadamente acenou em agradecimento. Ele sacudiu a cabeça como quem tenta tirar sabão do ouvido e se afastou.

Morte enfiou a mão nas profundezas do manto e retirou um saco de couro cheio de diferentes moedas de cobre, a maioria das quais azuladas ou esverdeadas pelo tempo. Examinou a conta com atenção. E separou uma dúzia de moedas.

— VENHA — disse, levantando-se. — TEMOS DE IR ANDANDO.

Mortimer seguiu-o pelo jardim até a rua, que ainda se encontrava bem movimentada apesar dos primeiros sinais da alvorada no horizonte.

— O que vamos fazer agora?

— COMPRAR ROUPAS NOVAS PARA VOCÊ.

— Estas aqui são novas.

— JURA?

— Meu pai disse que a loja era famosa pelo preço baixo — observou Mort, acelerando o passo a fim de não ficar para trás.

— COM CERTEZA ACRESCENTA UM NOVO HORROR À POBREZA.

Eles entraram numa rua larga, que levava a uma parte mais rica da cidade (as tochas ficavam mais próximas umas das outras; e os montes de lixo, mais espaçados). Ali não havia barracas ou vendedores de esquina, e sim construções respeitáveis com placas penduradas ao lado de fora. Não eram meras lojas; eram estabelecimentos comerciais. Dentro, havia fornecedores, bancos e escarradeiras. A maioria estava aberta mesmo àquela hora da noite porque o comerciante ankhiano médio não consegue dormir, imaginando o dinheiro que está deixando de ganhar.

— Ninguém dorme aqui? — perguntou Mort.