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— ISTO É UMA CIDADE — respondeu Morte, e abriu a porta de uma loja de roupas.

Vinte minutos mais tarde, quando os dois saíram, Mortimer vestia uma roupa preta bem ajustada, com leves bordados prateados, e o lojista olhava um punhado de antigas moedas de cobre e imaginava de onde exatamente haviam surgido.

— Como o senhor arranja essas moedas? — quis saber Mort.

— ÀS PENCAS.

Um barbeiro que mantinha o salão aberto durante toda a noite cortou o cabelo de Mortimer à última moda dos garotos da cidade, enquanto Morte descansava na cadeira ao lado, cantarolando baixinho. Para surpresa sua, estava de ótimo humor.

De fato, após algum tempo tirou o capuz e encarou o aprendiz do barbeiro — que ajeitou uma toalha em volta de seu pescoço, daquele jeito hipnotizado e distraído que Mortimer já começava a reconhecer — e disse:

— UM POUCO DE ÁGUA-DE-COLÔNIA E POLIMENTO, MEU BOM JOVEM.

Ao ouvir a voz pesada e sombria, um mago mais velho que vinha aparando a barba do outro lado se retesou e virou a cadeira. Ficou branco e murmurou alguns feitiços de proteção depois que Morte também se virou — bem devagar, para obter o máximo de efeito — e sorriu para ele.

Alguns minutos mais tarde, sentindo extrema timidez e um pouco de frio nas orelhas, Mortimer voltava para o estábulo onde Morte deixara o cavalo. Tentou uma nova maneira de andar, imaginando que o traje e o corte de cabelo pediam. Não funcionou muito bem.

Mortimer acordou.

Continuou deitado, olhando o teto enquanto a memória era rebobinada e os acontecimentos do dia anterior se cristalizavam na mente feito pedras de gelo.

Ele não podia ter conhecido o Morte. Não podia ter jantado com um esqueleto de olhos azuis, brilhantes. Aquilo devia ser um sonho estranho. Ele não podia ter montado um grande cavalo branco que subiu ao céu e depois foi... para onde?

A resposta lhe ocorreu como uma cobrança de impostos inevitável.

Aqui.

Levou as mãos ao cabelo tosado, depois ao lençol, de um material macio e escorregadio. Parecia muito melhor do que o de sempre que cheirava a ovelha. Aquele era como gelo quente e seco.

Ele pulou para fora da cama e correu os olhos pelo quarto.

Em primeiro lugar, era grande — maior do que sua casa inteira — e seco feito uma tumba velha em um deserto ancestral. O ar parecia ter sido cozido durante horas e então posto para esfriar. O tapete era fundo o suficiente para acobertar uma tribo de pigmeus e soltava estalos elétricos à medida que ele andava. Além disso, tudo tinha tons de roxo e preto.

Ele examinou o próprio corpo e viu que estava usando um longo camisão de dormir branco. Sua roupa se encontrava cuidadosamente dobrada na cadeira ao lado da cama. A cadeira, ele não pôde deixar de notar, era esculpida em forma de ossos e caveira.

Mortimer sentou na beira da cama e começou a se vestir, com a mente acelerada.

Abriu a pesada porta de carvalho e ficou decepcionado quando ela não rangeu de maneira assustadora.

Do lado de fora, havia um corredor de tábuas corridas, com grandes velas amarelas suspensas em castiçais na parede oposta. Mortimer se esgueirou do quarto e avançou pelo corredor até alcançar uma escada. Fez isso tudo sem que nada de terrível acontecesse, chegando afinal ao que parecia um hall de entrada cheio de portas. Ali havia uma porção de cortinas fúnebres e um relógio de pêndulo com um tique-taque que parecia o pulsar de uma montanha. Do lado, havia um cabide para guarda-chuvas..

Nele, estava uma foice.

Mortimer olhou as portas. Eram imponentes. Os arcos haviam sido abertos no já familiar desenho de ossos. Arriscou a mais próxima, e uma voz atrás dele disse:

— Não pode entrar aí, menino.

Mortimer levou alguns segundos para se dar conta de que não era uma voz dentro de sua cabeça, mas palavras humanas de verdade, formadas numa boca e transmitidas aos seus ouvidos através de um providencial sistema de compressão do ar, como aquelas cinco meras palavras.

Ele se virou. Havia uma garota ali, mais ou menos da altura dele e talvez alguns anos mais velha. Tinha cabelo cinzento e olhos de brilho perolado, e trajava o tipo de vestido longo, interessante e nada prático, em geral usado por heroínas trágicas que apertam uma rosa ao peito enquanto olham sentimentalmente para a Lua. Mortimer jamais ouvira a expressão “pré-rafaelita”, o que é uma pena, pois teria sido quase a descrição perfeita. No entanto, essas meninas tendem a ser magras e abatidas, ao passo que aquela ali dava a ligeira impressão de ter comido chocolates demais.

Ela o fitava com a cabeça inclinada para o lado e o pé batendo irritadamente no chão. Então estendeu rápido a mão e beliscou-lhe o braço com força.

— Ai!

— Hum. Então você é de verdade — avaliou ela. — Qual é seu nome, menino?

— Mortimer. Mas me chamam de Mort — respondeu ele, esfregando o cotovelo. — Por que fez isso?

— Vou chamá-lo de Menino — anunciou ela. — E não preciso ficar me explicando, mas, se quer saber, pensei que você estivesse morto. Parece morto.

Mortimer não disse nada.

— Perdeu a língua?

Na verdade, ele estava contando até dez.

— Não estou morto — falou, por fim. — Pelo menos, acho que não. Difícil dizer. Quem é você?

— Pode me chamar de senhorita Ysabell — provocou ela. — Meu pai falou que você precisa comer alguma coisa. Siga-me.

Ela avançou por uma das outras portas. Mortimer acompanhou-a a uma distância perfeita para que a porta voltasse e lhe acertasse o outro cotovelo.

Do outro lado, havia uma cozinha comprida, baixa e quente, com panelas de cobre penduradas no teto e um amplo fogão preto de ferro que ocupava toda uma parede. Assobiando diante dele, estava um senhor, fritando ovos e bacon.

Imediatamente o cheiro invocou as papilas gustativas de Mortimer, sugerindo que juntos eles poderiam se divertir. Ele se viu caminhando para frente sem nem mesmo consultar as próprias pernas.

— Albert — chamou Ysabell. — Mais um para o café da manhã. O homem se virou devagar e balançou a cabeça sem dizer uma palavra. Ela se voltou para Mortimer.

— Devo admitir — disse, com arrogância — que, podendo escolher de todo o Disco, papai deveria ter arranjado coisa melhor. Não sei se você vai servir.

Ela se retirou, batendo a porta.

— Servir para quê? — perguntou Mort, a ninguém em especial. A cozinha ficou em silêncio, exceto pelo chiado da frigideira e das pedras de carvão, no centro vazado do fogão. Mortimer notou que o aparelho tinha as palavras “O Lagartinho ®” gravadas na porta do forno.

O cozinheiro não pareceu notá-lo, então Mortimer puxou uma cadeira e se sentou à mesa branca.

— Cogumelo? — perguntou o homem, sem virar a cabeça.

— Hã? Quê?

— Perguntei se quer cogumelo.

— Ah. Desculpe. Não, obrigado — respondeu Mort.

— Pois bem.

Ele se virou e avançou para a mesa.

Mesmo depois que já estivesse acostumado, Mortimer sempre prenderia a respiração quando visse Albert andando. O empregado de Morte era um desses velhos magricelas que sempre parecem estar usando luvas com os dedos cortados — mesmo quando não estão —, e seu modo de caminhar envolvia uma complicada seqüência de movimentos. Albert se inclinou para frente, e o braço esquerdo começou a balançar, a princípio devagar, mas logo com um movimento alucinado que por fim e de súbito, mais ou menos quando esperaríamos que o braço saísse voando do cotovelo, estendeu-se rente ao corpo e impulsionou-o adiante como a um homem sobre pernas de pau caminhando em alta velocidade.

A frigideira traçou uma série de curvas complexas no ar e parou bem acima do prato de Mortimer.

Albert tinha até o tipo certo de óculos em meia-lua para espiar por sobre as lentes.