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Ipslore olhou para o rosto implacável de Morte.

— Preciso dar uma chance a eles?

— PRECISA.

Toc, toc, toc, faziam os dedos do mago no metal da vara.

— Então terão sua chance — decidiu ele — quando o inferno congelar.

— NÃO. MESMO À REVELIA, NÃO POSSO INFORMÁ-LO SOBRE A TEMPERATURA GERAL DOS OUTROS MUNDOS.

— Então… — vacilou Ipslore — terão sua chance quando meu filho jogar fora a vara.

— NENHUM MAGO JOGARIA FORA SUA VARA — protestou Morte. — A LIGAÇÃO É FORTE DEMAIS.

— Ainda assim, é possível, você tem de admitir.

Morte considerou a afirmativa. “Ter de” não era urna expressão que ele estivesse acostumado a ouvir, mas pareceu levar em conta o argumento.

— DE ACORDO.

— Essa pequena chance lhe basta?

— É SUFICIENTEMENTE MOLECULAR.

Ipslore relaxou um pouco. Numa voz que beirava a normalidade, disse:

— Eu não me arrependo. Faria tudo de novo. Crianças são a esperança para o futuro.

— NÃO EXISTE ESPERANÇA PARA O FUTURO — retrucou Morte.

— Então existe o quê?

— EU.

— Além de você!

Morte lhe dirigiu um olhar confuso.

— COMO ASSIM?

A tempestade alcançou seu ápice uivante. Uma gaivota passou voando de trás para frente.

— Eu quero saber — gritou Ipslore, irritado — o que existe neste mundo que faça a vida valer a pena.

Morte pensou no assunto.

— GATOS — respondeu, afinal. — GATOS SÃO LEGAIS.

— Maldito seja você!

— NÃO É O PRIMEIRO A DIZER ISSO — rebateu Morte, com calma.

— Quanto tempo ainda tenho?

Morte retirou uma ampulheta grande dos recônditos do manto. Os dois bulbos que a compunham eram cobertos de traços pretos e dourados, e a areia estava quase toda no recipiente de baixo.

— AH, CERCA DE NOVE SEGUNDOS.

Ipslore ficou de pé e estendeu a vara de metal brilhante em direção ao filho. Uma pequenina mão semelhante a um caranguejo rosado saiu de baixo do cobertor e segurou-a.

— Então, deixe-me ser o primeiro e último mago na história do mundo a passar a vara ao oitavo filho — começou ele, lenta e sonoramente. — E eu o encarrego de usá-la…

— EU ME APRESSARIA, SE FOSSE VOCÊ…

— … ao máximo — continuou Ipslore —, tornando-se o mais poderoso…

Um raio estourou no meio da nuvem, atingiu Ipslore na ponta do chapéu, desceu pelo braço, passou cintilando pela vara e acertou a criança.

O mago desapareceu num fio de fumaça. A vara brilhou em tom verde, depois branco e, em seguida, somente afogueado. A criança sorriu no sonho.

Quando o raio se foi, Morte estendeu os braços e pegou o menino, que abriu os olhos. Eles tinham um fulgor dourado. Pela primeira vez no que, por falta de palavra melhor, deve ser chamado de “sua vida”, Morte se pegou fitando um olhar que achou difícil retribuir. Os olhos pareciam voltar-se para um ponto no interior de sua caveira.

Não era minha intenção que isso acontecesse, soou, no ar, a voz de Ipslore. Ele está ferido?

— NÃO.

Morte desviou os olhos daquele sorriso ao mesmo tempo tenro e sagaz.

— ELE TEM O PODER. É FONTICEIRO. SEM DÚVIDA, VAI SOBREVIVER A COISAS PIORES. E AGORA… VOCÊ VEM COMIGO.

Não.

— SIM. VOCÊ ESTÁ MORTO.

Morte correu as órbitas oculares à volta, em busca da sombra oscilante de Ipslore, mas não conseguiu achá-la.

— ONDE ESTÁ VOCÊ?

— Na vara.

Morte apoiou-se na foice e suspirou.

— IDIOTA. NÃO ME CUSTA NADA TIRÁ-LO DAÍ.

Não sem destruir a vara, irrompeu a voz de Ipslore, parecendo a Morte que ele agora possuía certo ar de triunfo. E, agora que o menino aceitou a vara, você não pode destruí-la sem destruir a ele também. E isso você não pode fazer sem perturbar o destino. Minha última mágica. Caprichada.

Morte cutucou a vara. Ela estalou, e centelhas correram obscenamente em toda a sua extensão.

Por estranho que pareça, ele não estava com muita raiva. A raiva é urna emoção e, para sentir emoção, são necessárias glândulas. Morte nem sequer sabia de glândulas, e precisava de um bom motivo para ficar com raiva. Mas estava ligeiramente irritado. Suspirou outra vez. As pessoas sempre tentavam esse tipo de coisa. Por outro lado, era algo até interessante de se observar, e esta tentativa, pelo menos, era um pouco mais original do que o clássico e simbólico jogo de xadrez, que Morte detestava porque nunca se lembrava de como o cavalo se movia.

— VOCÊ SÓ ESTÁ ADIANDO O INEVITÁVEL — argumentou.

— Viver é isso.

— MAS O QUE, EXATAMENTE, VOCÊ PRETENDE?

— Quero ficar ao lado do meu filho. Quero ensiná-lo, mesmo que ele não o saiba. Vou guiar sua mente. E, quando estiver pronto, conduzirei seus passos.

— ENTÃO, ME DIGA — disse Morte — COMO FOI QUE VOCÊ CONDUZIU 0S PASS0S DE SEUS OUTROS FILHOS.

— Dirigi-os para fora de casa. Eles discutiam comigo, não queriam ouvir o que eu tinha a ensinar. Mas este aqui vai.

— VOCÊ ACHA UMA BOA IDÉIA?

A vara ficou quieta. Ao lado dela, o menino sorriu ao som da voz que somente ele escutava.

Não havia nenhuma analogia possível para o modo como Grande A’Tuin, a tartaruga estelar, avançava na noite galáctica. Quando temos 16 mil quilômetros de comprimento e uma carapaça cheia de crateras meteóricas, coberta por gelo de cometas, não existe absolutamente nada com que possamos realmente nos parecer, a não ser nós mesmos.

Portanto, Grande A’Tuin nadava devagar pelo abismo interestelar, simplesmente como a maior tartaruga que já existiu, levando em sua carapaça os quatro elefantes enormes que sustentavam em seu lombo o vasto e brilhante círculo, contornado pela queda d’água, do Discworld. Que existe por causa de um desvio impossível na curva da probabilidade, ou porque os deuses gostam mesmo de uma boa piada, como todo mundo.

Na verdade, a grande maioria das pessoas.

Próximo às margens do Mar Círculo, na antiga e desordenada cidade de Ankh-Morpork, numa almofada de veludo, sobre uma prateleira na Universidade Invisível, havia um chapéu.

Era um bom chapéu. Um chapéu magnífico.

Era pontudo, evidentemente, e tinha a aba mole e larga, mas, depois de conceber esses detalhes básicos, o designer havia realmente se dedicado com afinco ao trabalho. Havia rendas douradas, pérolas, peles dos melhores crudelarminhos[1], seixos brilhantes do Ankh lantejoulas de inacreditável mau gosto e — pista certeira, é claro — um círculo de octarinas [2].

Como naquele momento elas não se encontravam num campo de magia intensa, não estavam brilhando e pareciam apenas diamantes inferiores.

A primavera havia chegado a Ankh-Morpork. Não era perceptível de imediato, mas havia sinais óbvios para os entendidos. Por exemplo, a espuma do Rio Ankh — esse grande canal de águas lentas que servia à cidade gêmea como represa, esgoto e, freqüentemente, necrotério — havia ganhado um tom esverdeado iridescente. Os embriagados telhados da cidade revelavam colchões e travesseiros, já que a roupa de cama de inverno era colocada para arejar à luz fraca do sol, e, nas profundezas de porões bolorentos, vigas estalavam à medida que a seiva seca reagia ao chamado primitivo da floresta. Os pássaros aninhavam-se entre as calhas e os beirais da Universidade, embora fosse visível que, por maior que fosse a aglomeração em algumas áreas, eles jamais faziam ninho nas convidativas bocas abertas das gárgulas alinhadas nos telhados, para decepção delas.

Uma espécie de primavera havia chegado até mesmo à própria Universidade. Aquela era a Noite dos Pequenos Deuses, e um novo arqui-reitor seria eleito.

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1

Crudelarminho é um pequeno parente preto-e-branco do lemingue, encontrado nas frias regiões da Centrolândia. A pele é rara e muito valorizada, especialmente pelo próprio crudelarminho: o egoísta faz qualquer coisa para ficar com ela

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2

Quando o assunto são objetos cintilantes, os magos possuem o gosto e o autocontrole de uma arara alucinada