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— Você não me assusta — mentiu. Deu meia-volta e partiu em outra direção, estalando os dedos a fim de criar uma tocha de bela chama branca (apenas a penumbra de octarina traía a origem mágica).

Mais uma vez, a vara surgiu adiante. A luz da tocha virou uma fumaça fina de fogo branco que tremeluziu e desapareceu com um “clique”.

Ele aguardou, os olhos lacrimejando com rastilhos de imagens azuis, mas, se a vara ainda se encontrava ali, não parecia disposta a tirar vantagem dele. Quando a visão retornou, conseguiu divisar uma sombra ainda mais escura, à esquerda: a escada que levava à cozinha.

Correu para lá, saltando os degraus invisíveis e caindo pesada e inesperadamente nas lajes irregulares. O pálido luar se filtrava por uma grade a distância e, em algum lugar lá em cima, ele sabia, havia uma porta para o mundo exterior.

Cambaleando um pouco, com os tornozelos doendo e o som da própria respiração ressoando nos ouvidos, como se tivesse metido a cabeça inteira numa concha marinha, Lingote atravessou o interminável deserto dos corredores.

Coisas estalavam debaixo dos seus pés. Evidentemente não havia mais ratos, mas a cozinha não vinha sendo usada: os cozinheiros da Universidade sempre haviam sido os melhores do mundo, mas, agora, qualquer mago podia inventar pratos que ficavam além da mera habilidade culinária. As grandes panelas de cobre achavam-se penduradas na parede, esquecidas, já perdendo o brilho. E debaixo do gigantesco arco da chaminé não havia nada além de cinzas…

A vara estava atravessada na porta dos fundos, como uma tranca. Ergueu-se à aproximação de Lingote e ficou ali suspensa, irradiando silenciosa malevolência a poucos metros de distância. Com muita calma, começou a avançar na direção dele.

Lingote recuou, com os pés escorregando no chão gorduroso de pedras. Uma pontada na parte traseira das coxas fez com que gritasse, mas, ao tatear, descobriu que era apenas um dos talhos.

Em desespero, passou a mão pela superfície do objeto e, contra todas as probabilidades, achou um cutelo enterrado na madeira. Num gesto tão instintivo e antigo como a própria espécie humana, os dedos de Lingote fecharam-se no cabo.

Ele estava sem fôlego, sem paciência, sem tempo nem espaço, e também morrendo, quase literalmente, de medo.

Então, quando a vara se aproximou, ele puxou o cutelo com toda a força que conseguiu juntar… e hesitou. Tudo que havia de mago nele clamava contra a destruição de tamanho poder, poder que talvez pudesse ser usado por ele mesmo…

E a vara girou, de modo que o eixo apontava diretamente para ele.

A vários corredores dali, o bibliotecário estava encostado na porta da biblioteca, observando os clarões brancos e azuis que reluziam no chão. Ouviu o distante estalido de energia bruta e um ruído que começou baixo e acabou numa altura que nem mesmo Wuffles, deitado com as patas sobre a cabeça, ouviu.

Houve, então, um leve tinido ordinário, como o que poderia ser feito por um cutelo de metal torcido e derretido caindo no chão.

Era o tipo de barulho que fazia o silêncio seguinte avançar como uma avalanche quente.

O bibliotecário deixou-se envolver pelo silêncio e ficou estudando as fileiras de livros, cada qual pulsando no fulgor de sua própria magia. Todos os volumes o fitavam do alto.[13]

Eles haviam escutado. Dava para lhes sentir o medo.

O orangotango permaneceu imóvel como uma estátua durante vários minutos. Depois, pareceu chegar a uma conclusão. Dirigiu-se à escrivaninha e, após muita procura, achou a pesada argola, cheia de chaves. Voltou para o meio da sala e, decidido, disse:

— Oook.

Os livros inclinaram-se para a frente. Agora, o bibliotecário contava com a atenção integral deles.

— Que lugar é esse? — perguntou Conina.

Rincewind correu os olhos à volta e tentou adivinhar.

Eles ainda estavam no coração de Al Khali. Era possível ouvir o burburinho além dos muros. Mas, no meio da cidade, alguém havia aberto uma área imensa, cercado-a com muros e plantado um jardim romântico e artificial.

Parece que alguém separou quinze quilômetros quadrados da cidade e cercou-os com muros e torres — arriscou.

— Que idéia estranha! — avaliou Conina.

Bem, algumas religiões daqui… quando morremos, entende? acham que vamos para uma espécie de jardim, onde tem muita música e… — continuou ele, aflito — refresco e… mulheres.

Conina estudou o esplendor verde do jardim murado, com seus pavões, arcos intrincados e chafarizes. Doze mulheres deitadas fitavam-na, impassíveis. Uma misteriosa orquestra de cordas tocava a complicada música klatchiana.

— Eu não estou morta — retrucou. — Tenho certeza de que me lembraria. Além do mais, essa não é a minha idéia de paraíso. — Analisou as mulheres deitadas e acrescentou:-Quem será que faz o cabelo delas?

Nesse momento, sentiu uma ponta de espada na nuca, e ambos partiram, pelo caminho enfeitado, em direção a um pequeno pavilhão cercado de oliveiras. Ela franziu a testa.

— Seja como for, não gosto de refresco.

Rincewind não teceu nenhum comentário. Estava examinando seu próprio estado mental, e não ficou nada satisfeito com o que viu. Teve a terrível sensação de que estava se apaixonando.

Era certo que apresentava todos os sintomas. Havia as palmas molhadas, a quentura do estômago, a sensação geral de que a pele do peito era feita de elástico. Toda vez que Conina falava, vinha a sensação de que alguém lhe passava aço quente na espinha.

Ele voltou os olhos para a Bagagem, caminhando estoicamente a seu lado, e reconheceu os sintomas.

— Você também? — alarmou-se.

Talvez fosse apenas o jogo de luz sobre a maltratada tampa da Bagagem, mas também era possível que, por um instante, ela se mostrasse mais vermelha do que de costume.

É claro que a sábia madeira de pereira possui uma espécie de ligação mental com o dono… Rincewind sacudiu a cabeça. Por outro lado, isso explicaria por que a arca havia perdido a agressividade.

— Não daria certo — opinou ele. — Quer dizer, ela é mulher e você é um, bem, você é… — ele se deteve. — Bem, o que quer que você seja, é feito de madeira. Não daria certo. As pessoas comentariam.

Ele se virou e fitou os guardas, vestidos de preto.

— Não sei o que estão olhando — disse, rispidamente.

A Bagagem foi para junto de Conina, seguindo-a de perto, a ponto de a garota bater o tornozelo nela.

— Saia daqui! — explodiu a menina, e chutou-a novamente, desta vez por querer.

Até onde a Bagagem conseguia manifestar sentimentos, olhou ofendida para Conina.

O pavilhão à frente era uma estrutura abobadada, cravejada de pedras preciosas e sustentada por quatro colunas. No interior, havia um monte de almofadas, onde se sentava um homem gordo de meia-idade, cercado por três moças. Ele vestia um manto roxo entrelaçado com linhas de ouro. Elas, até onde Rincewind conseguia ver, mostravam que seis pequenas tampas de panela e uns poucos metros de rede dava conta do recado. Mas — ele estremeceu — não o bastante para mantê-lo afastado. O homem parecia escrever. Ergueu a cabeça.

— Alguém conhece uma boa rima para “vós”? — perguntou, irritado.

Rincewind e Conina se entreolharam.

— Anzóis? — arriscou Rincewind. — Atroz?

— Calos — sugeriu Conina, com alegria forçada.

O homem hesitou.

— De calos eu gosto — decidiu. — Calos promete. Para dizer a verdade, talvez calos funcione. Aliás, puxem uma almofada. Tomem um pouco de refresco. Por que estão parados aí?

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13

Ou de baixo, ou de viés. A estrutura da biblioteca da Universidade Invisível era um pesadelo topográfico, e a simples presença de tanta magia transformava as dimensões e a gravidade num tipo de espaguete que deixaria M.C. Escher de cabeça baixa. Ou de lado.