— São as cordas — respondeu Conina.
— Tenho alergia a aço frio — acrescentou Rincewind.
— Realmente, que chato — disse o homem gordo, e bateu uma palma com mãos tão cheias de anéis que o barulho foi, antes, um tinido. Dois guardas adiantaram-se e cortaram os laços. Todo o batalhão desapareceu, embora Rincewind estivesse bem consciente de que havia dezenas de olhos escuros observando-os da folhagem circundante. O instinto animal dizia-lhe que, apesar de parecer que estava sozinho com o homem e Conina, qualquer gesto agressivo de sua parte faria com que o mundo se transformasse num lugar hediondo. Ele tentou irradiar tranqüilidade e simpatia. Tentou pensar em algo a dizer.
— Bem — aventurou, olhando as tapeçarias de brocado, as colunas cravejadas de rubis e as almofadas fíligranadas com ouro —, o senhor ajeitou bem o lugar. E… — ele procurou algo adequadamente descritivo — … uma maravilha de criação.
— A gente busca a simplicidade — suspirou o homem, ainda escrevendo diligentemente. — Por que vocês estão aqui? Não que não seja sempre um prazer receber colegas estudiosos da musa poética.
— Fomos trazidos para cá — respondeu Conina.
— Homens com espadas — acrescentou Rincewind.
— Caríssimos colegas, eles fazem isso para manter a prática. Querem uma?
O gordo estalou os dedos para uma das moças.
— Agora, hã, não — começou Rincewind, mas ela havia pegado uma bandeja de palitos dourados e a oferecia recatadamente.
Ele experimentou uma das guloseimas. Era deliciosa, crocante, com um leve gosto de mel. Pegou mais duas.
— Desculpe — disse Conina. — Mas quem é o senhor? E que lugar é esse?
— Meu nome é Creosoto, xerinfe de Al Khali — respondeu o homem. — E esse é o meu Bosque. A gente faz o que pode.
Rincewind tossiu com o palito de mel.
— Não o Creosoto de “Rico como Creosoto”? — indagou.
— Esse era o meu querido pai. Na verdade, eu sou mais rico. Quando se tem muito dinheiro, é difícil atingir a simplicidade. A gente faz o que pode.
Ele suspirou.
— O senhor poderia doar — sugeriu Conina.
Ele suspirou outra vez.
— Não é fácil. Não, a gente só tem de tentar fazer pouco com muito.
— Não, não, mas olhe aqui — disse Rincewind, cuspindo pedaços do biscoito. — Dizem que tudo que o senhor toca vira ouro.
— Isso dificultaria as coisas na hora de ir ao banheiro — brincou Conina. — Desculpe.
— A gente ouve esses boatos — lamentou Creosoto, fingindo não escutar. — Que chato! Como se o dinheiro importasse. A verdadeira riqueza está nos cofres da literatura.
— O Creosoto de que eu ouvi falar — observou Conina, com tato — era chefe de um bando de, bem, matadores terríveis. Os Assassinos originais, temidos em toda a região central de Klatch.
Sem querer ofender.
— Ah, sim. Meu querido pai — confirmou Creosoto júnior. — Os haxixinos.[14] Que idéia inusitada. Mas não necessariamente eficaz. Por isso, contratamos os tugues.
— Sei. Que têm esse nome por causa de uma seita religiosa — afirmou Conina.
Creosoto dirigiu-lhe um olhar demorado.
— Não — protestou, devagar. — Acho que não. Acho que os batizamos assim por causa do ruído que fazem as cabeças das vítimas ao serem arrancadas do pescoço. Um horror.
Ergueu o pergaminho em que vinha escrevendo e continuou:
— Eu busco uma vida mais cerebral, que é o motivo de ter transformado o centro da cidade num Bosque. Muito melhor para o fluxo mental. A gente faz o que pode. Leio para vocês minha última ode?
— Pote? — perguntou Rincewind, que não estava entendendo nada muito bem.
Creosoto estendeu a mão e declamou o seguinte:
Ele se deteve e suspendeu a caneta, pensativo.
— Talvez calos não seja uma idéia tão boa — considerou —, agora que parei para analisar.
Rincewind estudou a folhagem podada, as pedras bem dispostas e os altos muros circundantes.
— Isso aqui é um bosque? — perguntou.
— Acho que os paisagistas incorporaram todas as características essenciais. Levaram um tempão para tornar os córregos sinuosos o bastante. Fui informado de que possuem áreas de grande esplendor e surpreendente beleza natural.
— E escorpiões — lembrou Rincewind, servindo-se de outro palito de mel.
— Disso eu não sei — respondeu o poeta. — Escorpiões não me parecem muito poéticos. Mel e gafanhotos são mais apropriados, segundo as instruções poéticas regulamentares, embora eu nunca tenha gostado de comer insetos.
— Sempre achei que o gafanhoto que se come em bosque fosse o fruto de uma árvore — disse Conina. — Papai sempre me disse que era muito ruim.
— Não é o inseto? — surpreendeu-se Creosoto.
— Acho que não.
O xerinfe olhou para Rincewind.
— Então pode acabar com eles — disse. — Bichinhos nojentos, eu já não gostava mesmo.
— Não quero parecer ingrata — disse ela, em meio à tosse alucinada de Rincewind. — Mas por que o senhor nos trouxe para cá?
— Boa pergunta.
Creosoto encarou-a durante alguns segundos, como se tentasse lembrar o motivo de os visitantes estarem ali.
— Você é uma moça linda — elogiou. — Por acaso, sabe tocar citara?
— Quantas lâminas tem? — perguntou Conina.
— Que pena — lamentou o xerinfe. — Acabei de importar uma.
— Meu pai me ensinou a tocar gaita — observou.
Os lábios de Creosoto mexeram-se em silêncio enquanto ele avaliava a idéia.
— Não serve — decidiu, afinal. — Não dá para escandir. Mas obrigado, assim mesmo. — Olhou-a outra vez. — Sabe, você é realmente bonita. Alguém já disse que seu pescoço parece uma torre de marfim?
— Nunca — admitiu Conina.
— Que pena — disse Creosoto.
Ele vasculhou as almofadas, suspendeu um pequeno sino e tocou-o.
Depois de algum tempo, um homem alto e taciturno surgiu de trás do pavilhão. Tinha a aparência de quem conseguiria usar saca-rolhas sem se abaixar, e alguma coisa nos olhos que faria qualquer roedor sair correndo.
Era o tipo de homem que nasce para ser vizir. Não havia muito o que lhe ensinar sobre enganar viúvas e aprisionar rapazes impressionáveis em pretensas cavernas de tesouro. Se o assunto era trabalho sujo, ele poderia escrever um livro a respeito, embora fosse mais provável que o roubasse, já pronto, de outra pessoa.
Trazia um turbante, do qual saía um chapéu pontudo. Obviamente, tinha um bigode fino e comprido.
— Ah, Abrim — saudou-o Creosoto.
— Vossa alteza?
— Meu grande vizir! — exclamou o xerinfe.
— Foi o que eu pensei… — murmurou Rincewind.
— Essas pessoas, por que as trouxemos aqui?
O vizir enrolou o bigode, provavelmente imaginando uma dezena de crueldades.
— O chapéu, vossa alteza — respondeu ele. — O chapéu, lembra?
— Ah, é. Fascinante. Onde o pusemos?
— Esperem aí — apressou-se Rincewind. — Esse chapéu… não seria um pontudo, amassado, com uma porção de coisas em cima? Rendas, e não sei mais o quê… — ele hesitou. — Ninguém o experimentou, experimentou?
— O próprio chapéu nos advertiu que não o fizéssemos — explicou Creosoto. — E claro que Abrim obrigou um escravo a usá-lo. O homem ficou com dor de cabeça.
14
O haxixinos, que devem seu nome à imensa quantidade de haxixe que ingeriam, eram únicos entre os matadores violentos, por serem implacáveis e, ao mesmo tempo, propensos a dar risadas, curtir jogos interessantes de luz na lâmina das facas e, em casos extremos, cair no chão.