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Era um rapaz, mais alto do que Rincewind. Quer dizer, o mago estava sentado, mas o garoto seria mais alto mesmo que o mago estivesse de pé.

Dizer que era magro seria perder a oportunidade perfeita de usar a palavra “descarnado”. Parecia que tabuleiros e espreguiçadeiras haviam figurado em sua genealogia, e o motivo de isso ficar tão óbvio eram as roupas.

Rincewind olhou-o novamente. Estivera certo da primeira vez.

O indivíduo de cabelo escorrido à sua frente estava usando o vestuário tradicional dos heróis bárbaros: algumas tiras de couro cravejadas de tachas, grandes botas de animal e pele arrepiada de frio. Não havia nada de notável nisso, víamos centenas de aventureiros vestidos da mesma maneira nas ruas de Ankh-Morpork, embora não víssemos nenhum outro usando…

O jovem acompanhou o olhar de Rincewind e encolheu os ombros.

— Não posso fazer nada — lamentou. — Prometi à minha mãe.

— Roupa íntima de lã?

Naquela noite, estavam acontecendo coisas estranhas em Al Khali. Havia certa coloração prateada, vinda do mar, que surpreendeu os astrônomos da cidade, mas essa não era a coisa mais estranha. Pequenos raios de magia em estado natural saíam das quinas das superfícies, como eletricidade estática, mas essa também não era a coisa mais estranha.

A coisa mais estranha entrou numa taverna, no limite da cidade, onde o vento incessante soprava o cheiro do deserto pelas janelas sem vidro, e sentou-se no chão.

Os fregueses observaram-na durante algum tempo, bebendo café com orakh. O drinque, feito de seiva de cacto e veneno de escorpião, é uma das bebidas alcoólicas mais fortes do universo, mas os nômades do deserto não a tomam por seus fins inebriantes. Usam-na porque precisam de algo que atenue o efeito do café klatchiano.

Não que pudéssemos usar o café para impermeabilizar telhados. Não que ele entrasse no estômago desacostumado como uma bola de fogo atravessando manteiga derretida. O que ele fazia era pior.

Ele nos deixava knurds.[16]

Os filhos do deserto olharam desconfiados para as minúsculas xícaras de café e perguntaram a si mesmos se não teriam exagerado no orakh. Estariam todos vendo o mesmo? Seria ridículo fazer um comentário? Esse é o tipo de coisa com que devemos nos preocupar se pretendemos ter algum crédito como perspicazes filhos do deserto. Apontar o dedo trêmulo e dizer “Vejam, uma arca com centenas de perninhas acabou de entrar aqui, não é incrível?” revelaria uma ausência terrível, e possivelmente fatal, de virilidade.

Os fregueses tentaram não se entreolhar, mesmo quando a Bagagem se aproximou da fileira de jarras de orakh, junto à parede oposta. A Bagagem tinha um jeito de ficar parada que, de algum modo, era ainda mais aterrorizante do que seu andar.

Por fim, um cliente disse:

— Acho que ela quer beber.

Houve um longo silêncio até que, com a precisão de um grande mestre de xadrez fazendo uma jogada mortal, outro freguês perguntou:

— Quem?

Os homens fitaram os próprios copos.

Durante algum tempo, não se ouviu nenhum ruído, salvo os passos de uma lagartixa no teto. O primeiro cliente respondeu:

— O demônio que está agora atrás de você, ó irmão de areia. O atual vencedor do Campeonato Municipal de Impassibilidade sorriu, até sentir lhe puxarem o manto. O sorriso permaneceu onde estava, mas parecia que o resto do rosto não queria ter nenhuma ligação com ele.

A Bagagem estava apaixonada e fazia o que qualquer sujeito sensato faria nessas circunstâncias, que era ficar bêbada. Não tinha dinheiro, nem como pedir o que queria, mas nunca teve muita dificuldade em se fazer entender.

O dono da taverna acabou passando uma noite longa e solitária, enchendo um pires de orakh até que a arca, já trôpega, saísse dali por uma das paredes.

O deserto estava em silêncio. Geralmente, não era assim. Em geral, ouvia-se o cricri dos grilos, o zumbido dos mosquitos, o rumor de asas batendo sobre a areia fria. Mas aquela noite estava silenciosa, com o silêncio diligente de dezenas de nômades dobrando suas barracas e dando o fora dali.

— Prometi à minha mãe — disse o garoto. — Estou sempre resinado, entende?

— Talvez você devesse tentar usar, bem, um pouco mais de roupa.

— Ah, eu não poderia. Temos de vestir todo esse arsenal de couro.

— Eu não o chamaria de todo — protestou Rincewind. — Não tem o bastante para chamar de todo. Por que tem de vestir isso?

— Para que as pessoas saibam que sou um herói bárbaro.

Rincewind recostou-se no muro fétido da cova das serpentes e fitou o menino. Viu dois olhos semelhantes a uvas cozidas, um emaranhado de cabelos louros e o rosto que era campo de batalha entre sardas nativas e as terríveis tropas invasoras da acne.

O mago gostava desses momentos. Eles convenciam-no de que não era louco, porque, se fosse louco, não sobraria nenhuma palavra para descrever algumas pessoas que encontrava.

— Herói bárbaro — murmurou.

— Está legal, não está? Essa parafernália de couro foi muito cara.

— E, mas, olhe… qual é o seu nome, rapaz?

— Nijel…

— Veja bem, Nijel…

— Nijel, o Destruidor — acrescentou Nijel.

— Veja bem, Nijel…

— O Destruidor…

— Tudo bem, Destruidor… — afligiu-se Rincewind.

— Filho de Lebremar, o Mercador de Provisões…

— O quê?

— Todo mundo é filho de alguém — explicou Nijel. — Está escrito aqui, em algum lugar…

Ele se virou e vasculhou o interior de uma bolsa de pele animal encardida, até achar um livro fino, rasgado e sujo.

— Tem uma parte sobre escolha de nome — murmurou.

— Como veio parar nessa cova?

— Eu queria roubar o depósito de tesouros de Creosoto, mas tive uma crise asmática — contou o bárbaro, ainda folheando as páginas barulhentas.

Rincewind olhou a cobra, que ainda procurava manter distância de todos. Ela sabia o que era complicação. E não pretendia incomodar ninguém. Apenas retribuiu o olhar do mago e encolheu os ombros, o que é notável para um réptil sem ombros.

— Há quanto tempo você é herói bárbaro?

— Estou começando. Sempre quis ser, e achei que poderia aprender com o tempo — Nijel encarou Rincewind. — Algum problema?

— Segundo dizem, é uma vida perigosa — arriscou Rincewind.

— Já imaginou o que seria vender legumes e verduras durante cinqüenta anos? — sussurrou Nijel, soturnamente.

O mago pensou no assunto.

— Alface está incluída? — perguntou.

— Está — respondeu Nijel, enfiando o misterioso livro de volta na bolsa.

O rapaz, então, começou a prestar atenção nos muros da cova.

Rincewind suspirou. Gostava de alface. Alface era muito entediante. Ele havia passado anos à procura do tédio e jamais o alcançara. Quando pensava que o tinha nas mãos, ávida de repente ficava cheia de curiosidades quase fatais. A idéia de que alguém poderia deliberadamente recusar a possibilidade de ficar entediado durante cinqüenta anos deixava-o transtornado. Com cinqüenta anos, pensou, ele poderia elevar o tédio ao status de arte. Não haveria fim para o que poderia fazer.

— Você conhece alguma piada de pavio de lampião? — perguntou, ajeitando-se confortavelmente na areia.

— Acho que não — respondeu Nijel, batendo numa laje.

— Eu conheço milhares. São muito engraçadas. Por exemplo, sabe quantos trolls são necessários para trocar um pavio de lampião?

— Essa laje gira — notou Nijel. — Olhe, é uma espécie de porta. Venha aqui me ajudar.

Ele empurrou com força, os bíceps saltando nos braços como ervilhas num lápis.

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16

Num universo verdadeiramente mágico, tudo tem seu oposto. Por exemplo, existe a antiluz. Não é o mesmo que escuridão, porque escuridão consiste apenas cm falta de luz. Antiluz é o que temos se atravessamos a escuridão até o outro lado. Nesse mesmo sentido, o estado de knurdia não é como a sobriedade. Comparada à knurdia, a sobriedade seria uma banheira de algodão. A knurdia retira toda a ilusão, toda a reconfortante neblina cor-de-rosa em que as pessoas normalmente passam a vida, e, pela primeira vez, as deixa ver e pensar às claras. Depois de gritarem um pouco, elas tomam o cuidado de jamais ficarem knurds de novo.