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— Ah, é o, hum, Rincewind, não é? Perguntou o tesoureiro, sem muito entusiasmo. — Qual é o problema?

— Estamos afundando!

Por alguns instantes, o tesoureiro limitou-se a encará-lo. Seu nome era Lingote. Era alto, magro e parecia ter sido um cavalo em vidas passadas. Sempre dava a impressão de estar olhando para a pessoa por meio dos dentes.

— Afundando?

— É. Os ratos estão fugindo!

O tesoureiro encarou-o outra vez.

— Entre, Rincewind — convidou, com gentileza.

Rincewind seguiu-o pela sala baixa e escura até a janela. Ela dava vista para os jardins e o rio, a fluir tranqüilamente em direção ao mar.

— Você não está, hum, exagerando? — perguntou o tesoureiro.

— Exagerando em quê? — indagou Rincewind, com a consciência pesada.

— Isso aqui é um prédio, entende? — disse o tesoureiro. Como a maioria dos magos, quando confrontados com um problema, ele começou a enrolar um cigarro. — Não é um navio. Tem algumas diferenças. Ausência de golfinhos brincando em volta da proa, falta de quilha, esse tipo de coisa. As chances de afundar são remotas. Senão, hum, teríamos de encher os porões e remar até a praia. Hum?

— Mas os ratos…

— Algum navio de cereal no porto. Uma espécie de, hum, ritual primaveril.

— Tenho certeza de que também senti a Universidade tremer — arriscou Rincewind, ligeiramente incerto.

Naquela sala silenciosa, com o fogo crepitando na lareira, nada daquilo parecia real.

— Um tremor passageiro. Grande A’Tuin com soluço, hum, talvez. O que você precisa é se controlar. Tem bebido?

— Não!

— Hum. Gostaria?

Lingote dirigiu-se ao armário de madeira escura e tirou duas taças, que encheu com o jarro de água.

— Prefiro xerez a essa hora do dia — disse, abrindo as mãos sobre as taças. — Diga, hum, seco ou suave?

— Hã, não — recusou Rincewind. — Talvez o senhor esteja certo. Acho que vou descansar um pouco.

— Boa idéia.

Rincewind atravessou os frios corredores de pedra. De vez em quando, tocava a parede e aguçava os ouvidos, então sacudia a cabeça.

Ao cruzar o pátio novamente, viu um bando de camundongos galgar a varanda e correr em direção ao rio. O chão em que pisavam também parecia se mover. Quando Rincewind se aproximou, notou que era porque estava coberto de formigas.

Aquelas não eram formigas comuns. Séculos de infiltração mágica nas paredes da Universidade haviam feito coisas estranhas a elas. Algumas puxavam pequenos carrinhos, outras seguiam montadas em besouros, mas todas abandonavam a Universidade o mais rápido possível. A grama ondulava a medida que passavam. Ele ergueu os olhos quando um velho colchão listrado foi lançado da janela e despencou no chão de pedras. Depois de uma pausa, aparentemente para tomar fôlego, o objeto levantou-se um pouco do chão. Depois, começou a avançar decidido pelo gramado e partiu para cima de Rincewind, que conseguiu sair do caminho na hora certa. Ele ouviu um chiado agudo e avistou milhares de perninhas determinadas debaixo da estrutura. Até os percevejos estavam de mudança e, para o caso de não acharem alojamento confortável em nenhum outro lugar, usavam de precaução. Um deles acenou para o mago e chiou em saudação.

Rincewind recuou, até alguma coisa lhe tocar a parte de trás das pernas e lhe congelar a espinha. Era apenas um banco de pedra. Ele observou-o durante algum tempo. O banco não parecia com pressa de fugir para lugar nenhum. Rincewind se sentou, agradecido.

Provavelmente existe urna explicação lógica para tudo isso, pensou. Ou, pelo menos, uma explicação ilógica perfeitamente normal.

Um ruído de pedras fez com que olhasse para o outro lado do jardim.

Não havia nenhuma explicação lógica para aquilo. Com inacreditável lentidão, descendo por parapeitos e canos de escoamento em silêncio absoluto, afora o ocasional rangido de pedra sobre pedra, as gárgulas vinham deixando o telhado.

É pena que Rincewind jamais houvesse assistido a filmes de baixa qualidade em câmera lenta, porque ele, então, saberia descrever exatamente o que estava vendo. As criaturas pareciam não se mexer, mas conseguiam avançar, numa série de quadros em alta velocidade, e passaram por ele num longo desfile de bicos, jubas, asas, garras e cocô de pombo.

— o que está acontecendo? — sussurrou ele.

Um negócio com rosto de duende, corpo de harpia e pernas de galinha virou a cabeça, numa série de movimentos súbitos, e falou, com voz semelhante à peristalse das montanhas (embora o efeito grave saísse prejudicado, porque, evidentemente, não podia fechar a boca). Disse:

— Um ondizero izdá bindo bara gá! Uja!

Rincewind perguntou “O quê?”, mas a coisa já havia partido e agora cambaleava pelo antigo gramado.[4]

Rincewind ficou olhando para o nada durante dez segundos exatos, até soltar um grito e sair correndo o mais rápido que podia.

Só parou quando chegou ao quarto. Não era exatamente um quarto, destinado principalmente a guardar móveis velhos, mas era seu lar.

Contra uma parede sombria, ficava o armário. Não se trata de um desses armários modernos, convenientes apenas a amantes nervosos que se enfiam ali dentro quando o marido volta para casa cedo, mas de uma velha estrutura de madeira, escura como a noite, em cujas profundezas empoeiradas cabides se reproduziam e sapatos velhos vagavam pelo fundo. Era bem possível que houvesse uma passagem secreta para mundos fabulosos, mas ninguém jamais tentara descobrir por causa do cheiro medonho de naftalina.

E no alto do armário, envolta em pedaços de papel amarelado e lençóis velhos, havia uma grande arca rematada em bronze. Seu nome era Bagagem. O motivo de ela ter concordado em ser de propriedade de Rincewind era algo que só a Bagagem sabia e nunca nos contaria, mas, provavelmente, nenhum outro artigo em toda a história dos acessórios de viagem tinha um passado de tamanho mistério e males corporais. Ela já havia sido descrita como meio arca, meio maníaca homicida. Possuía muitas características que podem ou não se manifestar em breve, mas, no momento, só havia uma que a distinguia de qualquer outra arca rematada em bronze. Ela estava roncando, com o ruído semelhante ao de serra em madeira.

A Bagagem podia ser mágica. Podia ser terrível. Mas, em sua enigmática alma, parecia-se com todas as outras peças de viagem do multiverso e preferia passar os invernos hibernando no alto do armário.

Rincewind deu-lhe vassouradas até fazer parar a serração, encheu os bolsos com as quinquilharias da caixa de bananas que usava como mesa-de-cabeceira e dirigiu-se até a porta. Não pôde deixar de notar que o colchão havia sumido, mas isso não tinha importância, porque ele estava certo de que nunca mais voltaria a dormir em colchão.

A Bagagem caiu no chão com um baque surdo. Depois de alguns segundos, e com extremo cuidado, estendeu centenas de perninhas rosadas. Oscilou um pouco para frente e para trás, alongando cada uma das pernas, abriu a tampa e bocejou.

— Você vem ou não vem?

A tampa se fechou com um estalo. A Bagagem movimentou as pernas num arranjo complicado, até se encontrar de frente para a porta, e seguiu o dono.

A atmosfera da biblioteca ainda estava carregada, com o ocasional tinido de uma corrente ou o ruído abafado de uma folha[5]. Rincewind estendeu o braço sob a mesa e agarrou o bibliotecário, que ainda se encontrava curvado debaixo do cobertor.

— Vamos!

— Oook.

— Eu pago uma bebida — ofereceu Rincewind, em desespero.

O bibliotecário desenroscou-se feito uma aranha de quatro patas.

— Oook?

Rincewind meio que arrastou o macaco porta afora. Não se dirigiu ao portão principal, mas ao trecho do muro onde, havia 2 mil anos, algumas pedras soltas ofereciam aos alunos uma entrada bastante discreta depois que as luzes da Universidade se apagavam. Então, parou tão subitamente que o bibliotecário se chocou com ele e a Bagagem colidiu com ambos.

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4

As marcas deixadas pelas gárgulas em fuga levaram o jardineiro-chefe da Universidade a morder a enxada e proferir a famosa frase: “Como se consegue um gramado desses? Basta cortar e aplanar durante quinhentos anos e então um bando de imbecis passar por cima”.

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5

Na maioria das bibliotecas antigas, os livros ficam acorrentados às estantes para não serem danificados pelos usuários. Na biblioteca da Universidade Invisível, obviamente, é mais ou menos o contrário.