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— Oook!

— Ah, meus deuses! — exclamou o mago. — Olhe só!

— Oook?

Havia uma onda negra e brilhosa fluindo de uma grade próxima às cozinhas. O luar prematuro iluminava milhões de dorsos pretos.

Mas não era a visão das baratas que se fazia perturbadora. Era o fato de que elas estavam marchando em cadência, em fileiras de cem. E claro que, como qualquer habitante informal da Universidade, as baratas eram um pouco fora do comum, mas havia algo particularmente desagradável no som de bilhões de patinhas minúsculas pisando o chão ao mesmo tempo.

Com cuidado, Rincewind esticou a perna e passou por cima da tropa em marcha. O bibliotecário também saltou para o outro lado.

A Bagagem, evidentemente, seguiu-os produzindo o barulho de alguém que sapateasse num saco de batatas fritas.

E assim, obrigando a Bagagem a percorrer todo o caminho até o portão, porque, do contrário, ela apenas abriria um buraco no muro, Rincewind deixou a Universidade, junto com todos os outros insetos e roedores assustados, e decidiu que, se algumas cervejas não o ajudassem a ver as coisas sob um ângulo diferente, então mais algumas o fariam. Com certeza, valia a pena tentar.

Foi por esse motivo que ele não estava presente no salão principal à hora do jantar. Aquela acabaria sendo a refeição perdida mais importante de sua vida.

Mais adiante, no muro da Universidade, houve um tinido leve quando um gancho de ferro se prendeu a uma das puas alinhadas no topo. Alguns instantes mais tarde, um vulto esguio, vestido de preto, descia com leveza ao jardim da Universidade e corria em silêncio para o salão principal, onde logo se perdeu nas sombras.

Ninguém o teria notado, mesmo. Do outro lado do campus, o fonticeiro avançava em direção ao portão da Universidade. Quando os pés dele pisavam o chão de pedras, faíscas azuis espocavam e faziam evaporar o orvalho noturno.

Fazia muito calor. A enorme lareira do salão principal estava quase incandescente. Os magos são muito friorentos: o mero sopro de calor proveniente das lenhas crepitantes derretia velas a seis metros de distância e formava bolhas no verniz das longas mesas. O ar que pairava sobre o banquete estava azul por causa da fumaça de tabaco, a traçar formas curiosas impulsionadas por correntes aleatórias de magia. Na mesa central, o porco assado parecia ligeiramente irritado com o fato de terem-no matado antes que pudesse terminar a maçã, e a maquete da Universidade, feita de manteiga, afundava suavemente num mar de gordura.

Havia muita cerveja. Aqui e ali magos de rosto vermelho cantavam alegremente músicas antigas, dando tapas nos joelhos e gritos de “Rá!” A única desculpa cabível para esse tipo de coisa é que os magos são celibatários e precisam achar diversão onde podem.

Outro motivo para o bom humor geral era o fato de que ninguém estava tentando matar ninguém. Essa não era uma situação comum nos círculos mágicos.

Os níveis mais elevados de magia são posições perigosas. Todo mago está sempre tentando derrubar quem está acima, ao mesmo tempo que pisa nos dedos de quem se encontra abaixo. Dizer que o mago é saudavelmente competitivo por natureza é como dizer que a piranha é um peixe naturalmente esfomeado. No entanto, desde que as grandes Guerras Mágicas deixaram inabitáveis regiões inteiras do Disco[6], os magos estavam proibidos de resolver suas diferenças por meios mágicos, porque isso gerava muitos problemas para a população e porque, de qualquer modo, era difícil saber qual dos montinhos de gordura fumegante que sobravam havia sido o vencedor. Dessa forma, eles tradicionalmente recorriam a facas, venenos secretos, escorpiões no sapato e hilariantes armadilhas com pêndulos de lâmina afiada.

Na Noite dos Pequenos Deuses, porém, considerava-se de extremo mau gosto matar um colega, e os magos ficavam à vontade para deitar os cabelos sem medo de serem estrangulados com eles.

A cadeira do arqui-reitor achava-se vazia. Wayzyganso jantava sozinho no gabinete, como convém ao homem escolhido pelos deuses depois de um debate sério com magos seniores sensatos. Apesar de seus 80 anos, estava um pouco nervoso e mal tocou a segunda galinha.

Dentro de poucos minutos, ele teria de fazer um discurso. Na juventude, Wayzyganso buscara o poder em lugares estranhos. Havia lutado com demônios em octogramas chamejantes, visto dimensões das quais o homem não deveria nem sequer ter notícia e até afrontado o comitê de concessões da Universidade Invisível. Mas nada nos oito círculos do vazio era tão terrível quanto duzentos rostos atentos fitando-o através da fumaça de cigarro.

Os mensageiros logo viriam chamá-lo. Ele suspirou, afastou o prato intocado de pudim, atravessou o quarto, ficou de frente para o grande espelho e vasculhou o bolso do manto à procura de suas anotações.

Depois de um tempo, conseguiu arrumá-las numa espécie de ordem e pigarreou.

— Irmãos de ofício — começou —, não posso nem dizer o quanto estou, hã, o quanto… belas tradições desta antiga Universidade… hã… quando olho à volta e vejo o retrato de todos os arqui-reitores…

Ele parou, rearranjou as anotações e prosseguiu, com mais firmeza.

— Estar aqui, hoje, me faz lembrar a história do vendedor ambulante de três pernas e das, hã, filhas do lojista. Parece que o lojista…

Alguém bateu à porta.

— Entre — resmungou Wayzyganso, estudando as anotações com atenção.

— Esse lojista — sussurrou —, esse lojista, sim, esse lojista tinha três filhas. Acho que eram. Isso. Eram três. Parece…

Ele olhou o espelho e se virou. Começou a perguntar “Quem e v…

E descobriu que, afinal de contas, existe coisa pior do que falar em público.

O pequeno vulto de preto, avançando pelos corredores desertos, ouviu um barulho, mas não lhe deu muita atenção. Barulhos estranhos não eram raros em áreas onde se praticava magia. O vulto procurava alguma coisa. Não sabia exatamente o quê, apenas que saberia quando achasse.

Depois de alguns minutos, a busca conduziu-o ao quarto de Wayzyganso. O ambiente estava cheio de espirais de gordura. Pequenas partículas de fuligem flutuavam suavemente em correntes de ar, e havia diversas pegadas queimadas no chão.

O vulto encolheu os ombros. Não há explicação para o tipo de coisa que se encontra em quarto de mago. Viu o próprio reflexo multifacetado no espelho partido, arrumou o capuz e deu prosseguimento à busca.

Movimentando-se como quem obedece a ordens internas, atravessou o quarto em silêncio até alcançar a mesa onde estava a caixa de couro alta, redonda e desgastada. O vulto aproximou-se dela e abriu a tampa com cuidado.

A voz que saiu de dentro parecia atravessar várias camadas de tapete ao dizer:

— Até que enfim. Por que demorou tanto?

— Quer dizer, como é que começaram com isso? Antigamente, havia magos de verdade, não tinha nada desse negócio de níveis. Eles chegavam e… aconteciam. Bum!

Um ou dois clientes, sentados ao balcão sombrio da Taverna Tambor Remendado, olharam à volta ao ouvir o barulho. Eram novos na cidade. Os fregueses regulares nunca reparavam em nenhum barulho estranho, como gemidos ou desagradáveis ruídos cartilaginosos. Era muito mais saudável. Em algumas partes da cidade, a curiosidade não só matava o gato, como o jogava no rio, com pesos de chumbo atados às patas.

As mãos de Rincewind agitaram-se, vacilantes, sobre a coleção de copos vazios na mesa em frente. Ele quase havia conseguido esquecer as baratas. Depois de mais uma bebida, talvez conseguisse também esquecer o colchão.

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6

Pelo menos, por quem pretendia acordar com a mesma forma, ou até da mesma espécie, como foi dormir