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Eles se estendiam por muitos quilômetros em todas as direções, e o estrondo da marcha acelerada enchia a atmosfera.

As geleiras-touros seguiam na frente, levantando grandes pedaços de terra ao se lançarem implacavelmente adiante. Atrás delas, seguia a grande massa de vacas e bezerros, deslizando no chão já nivelado pelas líderes.

Essas geleiras assemelhavam-se às geleiras conhecidas por nós, do mesmo modo como um leão dormindo na sombra se assemelha a 140 quilos de músculos perversamente coordenados, saltando na nossa direção com a boca aberta.

— … e… e… eu chegava à janela…

Sem nenhum comando adicional do cérebro, a boca de Nijel parou.

O gelo apoderava-se da planície, avançando sob uma grande nuvem de vapor seco. O chão tremia à medida que as líderes passavam, e era óbvio, para quem estava olhando, que quem quer que fosse deter aquilo precisaria de mais do que apenas um quilo de sal-gema e uma pá.

— Vá dar suas explicações — disse Conina. — Mas é melhor gritar. Nijel olhava o rebanho, aturdido.

— Acho que estou vendo uns vultos — notou Creosoto. — Olhem, em cima dos… negócios da frente.

Nijel espiou por entre os flocos de neve. Havia, de fato, algumas criaturas andando sobre as geleiras. Eram seres humanos, ou humanóides, ou humanescos. Não pareciam muito grandes.

Isso se dava porque as próprias geleiras eram imensas, e Nijel não era muito bom em perspectiva. Quando os cavalos baixaram vôo sobre a geleira da frente — um touro enorme, bastante fendido e marcado com morainas —, ficou evidente que um dos motivos de os Gigantes do Gelo se chamarem Gigantes do Gelo era o fato de serem gigantes.

O outro motivo era serem feitos de gelo.

Um vulto do tamanho de uma casa grande estava sentado sobre o touro, incitando-o a esforços maiores com a pua enfiada numa vara comprida. A criatura era rugosa e reluzia verde e azul. Havia uma faixa prateada estreita nos cachos nevados, e os olhos eram pequeninos, negros e fundos, como pedras de carvão.[20]

Ouviu-se o estrondo de quando as geleiras dianteiras se chocaram contra uma floresta. Alguns pássaros alçaram vôo em desespero. Chovia neve e galhos ao redor de Nijel no instante em que ele se aproximou do gigante, galopando.

O rapaz pigarreou.

— Hã… — disse. — Com licença.

A frente da arrebentação de terra, neve e troncos quebrados, um rebanho de caribus corria apavorado, com os cascos traseiros a poucos metros da derrubada geral.

Nijel tentou outra vez.

— Ei! — gritou.

O gigante virou-se.

— O gue vozê guer? — perguntou. — Zuma daqui, pezoa guente.

— Desculpe, mas será que isso é mesmo necessário?

O gigante encarou-o, estupefato. Virou-se devagar e avistou o resto do rebanho, que parecia se estender até o Centro. Voltou a olhar para Nijel.

— E — respondeu. — Ajo que zim. Zenão, por gue o faríamos?

— Só que tem muitas pessoas que prefeririam que não o fizessem, entende? — argumentou Nijel.

Uma espiral de pedra surgiu na frente da geleira, balançou por um segundo e desapareceu. Ele acrescentou:

— Crianças e animaizinhos também.

— Vão zofrer pelo progrezo. E a noza hora, a gente veio reivindigar o mundo — resmungou o gigante. — Um mundo inteiro de gelo. Zegundo a inevitabilidade da hiztória e o triunfo da termodinâmica.

— E, mas vocês não precisam fazer isso — insistiu Nijel.

— Nós gueremos — rebateu o gigante. — Os deuses ze foram. E derrubamos zuperztizões antigas.

— Congelar o mundo inteiro não me parece nada progressista — argumentou Nijel.

— Nós goztamos.

— Tudo bem, tudo bem — disse Nijel, no tom alucinado de quem tenta ver todos os lados da questão e está certo de que é possível chegar a uma solução desde que pessoas de boa vontade se disponham a sentar à mesa e discutir o assunto racionalmente, como seres humanos sensatos. — Mas seria a melhor hora? O mundo está pronto para o triunfo do gelo?

— E melhor gue ezteja — concluiu o gigante, e brandiu a aguilhada para Nijel.

A vara atingiu o rapaz no peito, arrancando-o da sela e jogando-o na própria geleira. Ele rodopiou, caiu de braços e pernas abertas sobre a neve e rolou por uma das ladeiras em meio ao gelo e à lama.

Conseguiu se pôr de pé e tentou enxergar na névoa fria. Outra geleira vinha em sua direção.

Conina também. Ela se inclinou quando o cavalo atravessou a névoa, pegou Nijel pela roupa bárbara de couro e jogou-o à frente do animal.

Enquanto os dois alçavam vôo novamente, ele vociferou:

— Sujeito frio, desgraçado! Por um instante, achei que estivesse conseguindo alguma coisa. Não dá para conversar com certa gente.

O rebanho atingiu outra colina, desbastando boa parte dela. E, salpicada de cidades, a Planície Sto jazia indefesa adiante.

Rincewind acercou-se da Coisa mais próxima, segurando Coin numa das mãos e balançando a meia de areia na outra.

— Então, nada de magia, não é? — perguntou.

— E — respondeu o menino.

— Aconteça o que acontecer, você não pode fazer mágica?

— Exatamente. Aqui, não. Se não usamos magia, elas não têm muito poder aqui. Agora, quando passam para o outro lado…

A voz se perdeu.

— Um horror — murmurou Rincewind.

— Terrível — concordou Coin.

Rincewind suspirou. Queria estar com o chapéu. Teria de passar sem ele.

— Muito bem — disse. — Quando eu gritar, você corre para a luz. Entendeu? Não olhe para trás. Por nada neste mundo.

— Por nada neste mundo? — perguntou Coin, vacilante.

— Por nada neste mundo — confirmou Rincewind, abrindo um sorriso de bravura. — Por mais terríveis que sejam os ruídos que você escutar.

O mago ficou vagamente encorajado ao ver a boca de Coin virar um “O” de pavor.

— Aí — continuou ele —, quando chegar ao outro lado…

— Eu faço o quê?

Rincewind hesitou.

— Não sei — respondeu. — O que conseguir. As mágicas que quiser. Qualquer coisa. O que for preciso para detê-las. E então… hum…

— O quê?

Rincewind espiou a Coisa, que ainda contemplava a luz.

— Se… sabe… alguém sair dessa, sabe, e tudo ficar bem depois de tudo, eu gostaria que você meio que dissesse às pessoas que eu meio que estive aqui. Talvez pudessem escrever isso em algum lugar. Eu não quero estátua nem nada — acrescentou, com altivez.

Depois de um tempo, emendou:

— Acho que você precisa assoar o nariz.

Coin obedeceu, na bainha do manto, e apertou a mão de Rincewind.

— Se algum dia você… — começou — … quer dizer, você é o primeiro… foi um grande… sabe, eu nunca… — A voz se perdeu, e ele falou: — Eu só queria que você soubesse disso.

— Tem mais uma coisa que eu estava tentando dizer-observou Rincewind, soltando a mão. O mago pareceu indeciso por um instante, e acrescentou: — Ah, sim. E essencial você se lembrar de quem realmente é. Isso é muito importante. Não devemos deixar os outros fazerem isso por nós. Porque sempre acabam escorregando.

— Vou tentar me lembrar disso — prometeu Coin.

— E muito importante — frisou Rincewind, quase para si mesmo. — Agora, acho melhor você correr.

Rincewind aproximou-se da Coisa. A criatura tinha pernas de galinha, mas, por sorte, a maior parte do corpo estava escondida no que pareciam asas dobradas.

Era hora de algumas últimas palavras, pensou ele. O que diria agora seria, provavelmente, muito importante. Talvez fossem palavras a ser lembradas, passadas a gerações futuras e até gravadas em lajes de granito.

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20

Embora essa fosse a única semelhança com os bonecos criados pelas crianças em resposta a lembranças antigas e ignoradas, em tempo de neve. Era muito pouco provável que aquele Gigante do Gelo virasse um pequeno monte de gelo sujo, com uma cenoura dentro, pela manhã.