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Impeliu a porta e avanç ou um passo, mas não descortinou vivalma na escuridão.

Aventurou-se um pouco mais e, de súbito, detectou um som atrás dele. No momento em que principiava a voltar-se, uma barra de ferro atingiu-o na clavícula, obrigando-o a cair. Acto contínuo, um bastão fracturou-lhe a cabeça e uma mão gigantesca ergueu-o e segurou-o, ao mesmo tempo que punhos e botas cardadas lhe flagelavam o corpo impiedosamente. A agressão pareceu prolongar-se de forma interminável. Quando a dor se tornava insuportável e ele principiava a perder os sentidos, vertiam-lhe água fria no rosto para o espevitar. Num dado instante, afigurou-se-lhe descortinar o semblante do criado de Van der Merwe, Banda, mas a punição que lhe aplicavam obrigou-o a esquecer o pormenor.

Por último, nem a água fria conseguiu fazê -lo emergir da inconsciência.

Sentia o corpo em brasa. Alguém lhe raspava as faces com lixa e Jamie tentou em vão erguer a mão para protestar. Efectuou um esforço para abrir os olhos, mas o inchaço não lho permitiu. Conservava-se estendido, todas as fibras do corpo uivando de dor, ao mesmo tempo que tentava recordar-se onde estava. Moveu-se e a sensação desagradável repetiu-se. Estendeu a mão cegamente e sentiu o contacto de areia. O rosto encontrava-se pousado na areia quente. Com extrema lentidão, cada movimento traduzido numa agonia individual, conseguiu erguer-se de joelhos. Tentou enxergar por entre as pálpebras inchadas, mas só logrou divisar imagens confusas.

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Encontrava-se algures no meio do estéril Karroo, completa-mente despido. Apesar da hora matutina, os raios solares começavam a flagelar-lhe o corpo. Olhou em volta com desespero, em busca de comida e um pouco de água, mas não havia coisa alguma. Haviam-no deixado ali para que morresse. “Salomon van der Merwe e, evidentemente, o bartender, Smit”. Jamie ameaçara o holandês, que o castigara com a mesma facilidade como se se tratasse de uma criança. “Há-de descobrir que não sou um garoto”, prometeu Jamie a si próprio. “Deixei de o ser.

Transformei-me num vingador. Hão-de pagar o que fizeram!” O ódio que o percorria incutiu-Lhe forças para se pôr de pé. O simples acto de respirar constituía uma verdadeira tortura. Quantas vértebras lhe tinham fracturado? “É preciso cuidado, para que não perfurem os pulmões.” Tentou pôr-se de pé, mas caiu com um grito. A perna direita achava -se partida e conservava-se num ângulo inverosímil. Era -lhe impossível caminhar. Mas podia rastejar.

Jamie McGregor não fazia a mínima ideia de onde se encontrava. Deviam tê-lo levado para longe do caminho normalmente percorrido, para que só fosse localizado por hienas e aves de rapina. O deserto constituía um vasto ossário. Ele vira os esqueletos de corpos humanos após a passagem dos abutres. De repente, ouviu sobre a sua cabeça o bater sinistro de asas e acudiu-lhe uma onda de terror.

Estava impossibilitado de ver, mas notava o cheiro nauseabundo que exalavam.

Começou a rastejar.

Esforçou-se por concentrar o pensamento na dor. Difundia-se por todo o corpo e cada pequeno movimento originava torrentes de agonia. Se se deslocava de determinada maneira, a perna fracturada protestava de forma pungente. Se mudava de posição para não a sobrecarregar, eram as vértebras que lhe recordavam a sua condição precária. Não podia suportar a tortura de permanecer imóvel, nem a agonia de se movimentar.

Continuou a rastejar.

O bater das asas prosseguia sobre a sua cabeça, indicando que os abutres aguardavam pacientemente o momento propício

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para atacar. O seu espírito começou a vaguear. Encontrava -se na igreja de Aberdeen, com o trajo domingueiro, sentado entre os dois irmãos. A irmã, Mary, e Annie Cord usavam belos vestidos de Verão brancos, e a segunda olhava-o, sorridente. Jamie fez menção de se levantar para lhe ir falar, mas os irmãos impeliram-no para trás e principiaram a beliscá-lo. Os beliscos converteram-se em espasmos de dor excruciantes e ele voltou a encontrar-se no deserto, o corpo estropiado rastejando com lentidão. Entretanto, os abutres voavam cada vez mais baixo, impacientes.

Jamie tentou abrir os olhos, para ver se estavam perto, mas apenas conseguiu vislumbrar objectos indefinidos, que a imaginação febril convertia em hienas e chacais vorazes.

Recomeçou a rastejar, consciente de que no instante em que se detivesse lhe cairiam em cima. Ardia de febre e dor e o corpo era causticado pela areia escaldante. Apesar disso, não podia renunciar à luta enquanto Van der Merwe continuasse impune… enquanto estivesse vivo.

Acabou por perder toda a noção do tempo. Afigurava-se-Lhe que percorrera cerca de dois quilómetros, embora na realidade não tivesse avançado mais de dez metros, rastejando num círculo. Não podia ver onde estivera ou para onde se dirigia. O espírito concentrava-se numa única ideia: Salomon van der Merwe.

Terminou por imergir em inconsciência e foi acordado por uma agonia irresistível.

Alguém lhe tocava na perna, e ele necessitou de um momento para se recordar de onde estava e o que se passava. Por último, descerrou levemente um dos olhos inchados. Um abutre enorme atacava-lhe a perna, dilacerando a carne e comendo-a sem aguardar que morresse. Jamie tentou gritar, mas não conseguiu emitir o mínimo som. Arrastou-se freneticamente para a frente e sentiu o sangue morno brotar da perna, enquanto os vultos sombrios das aves de rapina o circundavam, na expectativa do momento final. Pressentiu que na próxima vez que perdesse o conhecimento não tornaria a acordar. No entanto, as forças esvaíam-se gradualmente, até que se imobilizou na areia.

Os abutres prepararam-se então para o festim.

Capítulo quarto Sábado era dia de mercado na Cidade do Cabo e as ruas achavam-se apinhadas de comerciantes em busca de negócios vantajosos, uma troca de impressões com amigos ou encontros de natureza romântica. Bóeres e franceses, soldados de uniformes coloridos e damas inglesas de saias em balão e blusas de pregas confraternizavam diante dos bazares montados nos largos de Braameonstein, Park Town e Burgersdorp. Havia de tudo à venda: mobiliário, cavalos e carruagens e fruta. Uma pessoa podia comprar vestidos e tabuleiros de xadrez, carne ou livros numa dezena de idiomas diferentes. Aos sábados, a Cidade do Cabo era uma feira ruidosa e animada.

Banda abria caminho por entre a multidão, sem pressa, preocupando-se em não estabelecer contacto visual com os brancos. Era muito perigoso. As ruas estavam pejadas de negros, indianos e mestiços, mas o predomínio pertencia à minoria branca, que Banda detestava. Aquela era a sua terra e os brancos os uillanders.

Havia muitas tribos na África Austral - Basutos, Zulos, Bechuanas e Matabele -, todas elas Bantos. O próprio termo “banto” derivava de abantu - “o povo”. Porém os Barolongs, a tribo de Banda, constituíam a aristocracia. Ele recordava -se das histórias que a avó lhe contava acerca do vasto reino negro que outrora dominara a África do Sul. O seu reino, a sua terra. E agora eram escravizados por um punhado de chacais. Os brancos tinham-nos impelido para territórios cada ve z mais exíguos, até que a sua liberdade fora corroída. A única maneira de um negro poder existir era mostrar-se astucioso e subserviente à superfície e alerta no íntimo.

Banda ignorava a idade que tinha, porque os nativos não dispunham de certificado de nascimento. A sua idade era medida pelos factos históricos conhecidos: guerras e batalhas, nascimento e morte de chefes importantes, cometas, tempestades e tremores de terra, migração de Adam Kok, morte de Chaka e revolução do abate de gado. Mas o número dos anos dele não interessava. Banda sabia que era filho de um chefe e estava destinado a fazer algo pelo seu povo. Os Bantos voltariam a erguer-se e a dominar. A ideia da sua missão fê-lo caminhar mais empertigado por um momento, até que se apercebeu do olhar de um branco cravado nele.

Banda encaminhou-se apressadamente para os arrabaldes da cidade, a zona atribuída aos negros. As residências espaçosas e as lojas atraentes não tardaram a ceder o lugar a cabanas de chapa metálica e choças humildes. Avançou por uma rua de terra batida, olhando com frequência por cima do ombro para se certificar de que não o seguiam. Por último, imobilizou-se diante de uma barraca de madeira, lançou uma derradeira olhadela em volta e entrou. Uma negra esquálida sentava-se numa cadeira ao canto, cerzindo um vestido, e Banda saudou-a com uma inclinação de cabeça, após o que prosseguiu em direcção ao quarto ao fundo.