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tamentos por temporada, esperando que fossem chamadas para um teste que mudaria para sempre suas vidas.

Tudo sempre tão esperado. Tudo sempre tão previsível. Se resolvesse entrar agora em um daqueles “almoços” ninguém ousaria pedir sua identifi cação, porque era ainda cedo e os promotores tinham medo de que o evento terminasse vazio. Em meia hora, porém, dependendo do resultado, os guarda-costas tinham ordens expressas para deixar passar apenas moças bonitas e desacompanhadas.

Por que não testar?

Obedece ao seu impulso — afi nal, tem uma missão a cumprir.

Desce um dos acessos à praia, que em vez de levar até a areia conduz a um grande toldo branco com janelas de plástico, ar-refrigerado, móveis claros, cadeiras e mesas em sua maior parte vazias. Um dos guarda-costas pergunta se tem convite, ele responde que sim. Finge procurar no bolso. Uma recepcionista vestida de vermelho pergunta se pode ajudar.

Ele estende seu cartão de visita — o logotipo de sua companhia de telefones, Igor Malev, presidente. Afi rma que seguramente está na lista, mas deve ter deixado o convite no hotel — viera de uma série de encontros e se esquecera de trazer consigo. A recepcionista lhe dá as boas-vindas e o convida para entrar; aprendera a julgar os homens e mulheres pela maneira com que estavam vestidos, e sabia também que “presidente” quer dizer a mesma coisa em qualquer lugar do mundo. Além do mais, presidente de uma companhia russa! Todos sabem que os russos, quando são ricos, gostam de mostrar que estão nadando em dinheiro. Não era preciso checar a lista.

Igor entra, vai até o bar — na verdade, a tenda é muito bem equipada, dispõe até de uma pista de dança — pede um suco de abacaxi sem álcool, porque combina com a cor do ambiente.

E sobretudo porque no meio do copo enfeitado com um pequeno guarda-chuva japonês azul está um canudo negro.

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Senta-se em uma das muitas mesas vazias. Entre as poucas pessoas presentes estava um homem com mais de 50 anos, cabelos tingidos de acaju, bronzeado artifi cial, o corpo exaustivamente trabalhado em academias de ginástica que prometem a juventude eterna. Usa uma camiseta surrada, e está sentado com outros dois homens, estes em impecáveis ternos de alta-costura. Os dois homens o encaram, e Igor desvia a cabeça — embora continue prestando atenção na mesma mesa, protegido pelos óculos escuros. Os homens de terno continuam analisando quem é o recém-chegado e logo se desinteressam.

Mas Igor continua interessado.

O homem sequer tem um celular em cima da mesa, embora seus auxiliares não parem de atender chamadas.

Se deixam entrar um tipo como aquele, mal vestido, suado, feio que se acha bonito, e ainda por cima lhe dão uma das melhores mesas. Se o seu celular está desligado. Se nota que volta e meia um garçom aparece por perto, perguntando se deseja algo. Se o homem não se digna sequer a responder, apenas faz um sinal negativo com a mão, Igor sabe que está diante de uma pessoa muito, mas muito importante.

Tira do bolso uma nota de 50 euros e dá para o garçom que co-meça a colocar os talheres e pratos na mesa.

— Quem é o senhor com aquela camiseta azul desbotada? —

moveu os olhos em direção à mesa.

— Javits Wild. Um homem muito importante.

Ótimo. Depois de alguém completamente insignifi cante como a menina na praia, alguém como Javits seria o ideal. Não alguém famoso, mas importante. Alguém que faz parte daqueles que decidem quem deve estar sob a luz dos holofotes, e não se importam nem um pouco em aparecer, porque sabem quem são. Os que movimentam os cordões de suas marionetes, fazendo com que elas se julguem as pessoas mais privilegiadas e cobiçadas do planeta, até que um dia, por uma razão qualquer, resolvem cortar esses fi os e os bonecos caem, sem vida e sem poder.

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Um homem da Superclasse.

Isso signifi ca: alguém com falsos amigos e muitos inimigos.

— Mais uma pergunta. Seria aceitável destruir mundos em nome de um amor maior?

O garçom riu.

— O senhor é Deus, ou o senhor é gay?

— Nenhum dos dois. Mas obrigado por responder assim mesmo.

Percebe que agira errado. Em primeiro lugar, porque não precisa do apoio de ninguém para justifi car o que está fazendo; está convencido de que se todos no planeta vão morrer um dia, que alguns percam sua vida em nome de algo maior. Tem sido assim desde o iní-

cio dos tempos, quando homens se sacrifi cavam para alimentar suas tribos, quando virgens eram entregues aos sacerdotes para aplacar a ira de dragões e de deuses. Em segundo lugar, chamara a atenção de um estranho, mostrando que estava interessado no homem diante de sua mesa.

Ele iria esquecer, mas não há necessidade de riscos desnecessá-

rios. Diz a si mesmo que em um festival como esse é normal que as pessoas queiram saber quem são as outras, e mais normal ainda que tal informação seja remunerada. Já fi zera isso centenas de vezes, em diversos restaurantes do mundo, e com toda certeza já tinham feito a mesma coisa com ele — pagar o garçom para saber quem é, para conseguir uma mesa melhor, para enviar uma mensagem discreta.

Garçons não apenas estão acostumados, mas esperam esse tipo de comportamento.

Não, ele não irá se lembrar de nada. Está diante de sua próxima vítima; se conseguir levar seu plano até o fi nal, e se o garçom for interrogado, dirá que a única coisa estranha naquele dia foi uma pessoa perguntando se era aceitável destruir mundos em nome de um amor maior. Talvez nem mesmo se lembrasse da frase. Os policiais diriam: “Como era ele?” “Não prestei muita atenção. Mas não era gay.” Os policiais estavam acostumados com os intelectuais france-5 7

ses, que escolhiam geralmente os bares para fazerem teses e análises complicadíssimas sobre, por exemplo, a sociologia de um festival de cinema. E deixariam o assunto de lado.

Mas alguma coisa o incomodava.

O nome. Os nomes.

Já matara antes, com as armas e a bênção do seu país. Não sabia quantas pessoas, mas raramente pudera ver suas faces, e nunca, absolutamente nunca, perguntara seus nomes. Porque saber isso signifi ca também ter conhecimento de que está diante de um ser humano, e não de um inimigo. O nome faz com que alguém se transforme em um indivíduo único e especial, com passado e futuro, ascendentes e possíveis descendentes, conquistas e derrotas. As pessoas são os seus nomes, se orgulham deles, o repetem milhares de vezes no curso de uma vida, e se identifi cam com aquelas palavras. É a primeira palavra que aprendem depois do genérico “papai” e “mamãe”.

Olivia. Javits. Igor. Ewa.

Mas o espírito não tem nome, é a verdade pura, está habitando aquele corpo por determinado período, e um dia o deixará — sem que Deus se preocupe em perguntar “quem é você?” quando a alma chega diante do julgamento fi nal. Deus perguntará apenas: “Você amou enquanto estava vivo?” A essência da vida é essa: a capacidade de amar, e não o nome que carregamos em nossos passaportes, cartões de visitas, carteiras de identidade. Os grandes místicos trocavam seus nomes, e às vezes os abandonavam para sempre.

Quando perguntam a João Batista quem ele é, diz apenas: “Sou a voz que clama no deserto.” Ao encontrar o sucessor de sua igreja, Jesus ignora que passou a vida inteira respondendo ao chamado de Simão, e passa a chamá-lo Pedro. Moisés pergunta a Deus o seu nome: “Eu sou”, é a resposta.

Talvez devesse procurar outra pessoa. Já bastava uma vítima com nome: Olivia. Mas neste momento, sente que não pode mais recuar, embora esteja decidido a não perguntar mais como se chama 5 8

o mundo que está prestes a ser destruído. Não pode recuar porque quer ser justo com a pobre menina na praia, completamente desprotegida, uma vítima tão fácil e tão doce. O seu novo desafi o

— pseudo-atlético, cabelo acaju, suado, com um olhar de tédio e um poder que deve ser muito grande — é muito mais difícil. Os dois homens de terno não são apenas assessores; notou que volta e meia suas cabeças percorrem o ambiente, vigiando tudo que acontece ao redor. Se quer ser digno de Ewa e justo com Olivia, precisa mostrar sua coragem.