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Deixa o canudo repousando no suco de abacaxi. Aos poucos as pessoas começaram a chegar. Agora é aguardar que o ambiente fi que cheio — mas isso não deve demorar muito. Da mesma maneira que não tinha planejado destruir um mundo em plena avenida de Cannes, à luz do dia, tampouco sabe exatamente como executar o seu projeto ali. Mas algo o diz que escolheu o local perfeito.

Seu pensamento não está mais na pobre menina da praia; a adrenalina é injetada em seu sangue com rapidez, o coração bate mais rápido, está excitado e contente.

Javits Wild não iria perder seu tempo apenas para comer e beber de graça, em uma das milhares de festas para as quais devia ser convidado todos os anos. Se estava ali, devia ser por algo ou alguém.

Esse algo, ou esse alguém, com toda certeza seria seu melhor álibi.

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12:26 PM

Javits vê os convidados chegando, o ambiente que fi ca lotado, e pensa a mesma coisa:

“O que eu estou fazendo aqui? Não preciso disso. Aliás, preciso de muito pouca coisa dos outros — tenho tudo o que quero. Sou famoso para aqueles que conhecem o meio cinematográfi co, tenho as mulheres que desejo, embora saiba que sou feio e estou mal vestido.

Faço questão de estar assim. Já passei da época em que tinha um único terno, e nas raras ocasiões em que conseguia um convite da Superclasse (depois de rastejar, implorar, prometer), me preparava para um almoço destes como se fosse a coisa mais importante do mundo. Hoje sei que a única coisa que varia são as cidades; quanto ao mais, o que acontecerá aqui é previsível e aborrecido.

“Pessoas virão dizer que adoram meu trabalho. Outros me chamarão de herói, e agradecerão pelas chances que estou dando aos excluídos. Mulheres bonitas e inteligentes, que não se deixam con-fundir pela aparência, irão notar o movimento em torno da minha mesa, perguntarão ao garçom quem sou, e logo vão conseguir uma maneira de se aproximar, convencidas de que a única coisa em que estou interessado é sexo. Todos, absolutamente todos, querem me pedir algo. Por isso me elogiam, me adulam, me oferecem o que julgam que eu preciso. Mas tudo que desejo mesmo é estar só.

“Já assisti a milhares de festas como essa. E não estou aqui por nenhuma razão especial — exceto pelo fato de que não consigo dormir, mesmo que tenha vindo em meu avião particular, uma maravilha tecnológica capaz de voar a mais de 11 mil metros de altitude diretamente da Califórnia para a França sem parar para reabastecer. Mudei a confi guração original da cabine: embora o avião possa trazer 18 pessoas com todo o conforto possível, reduzi o número de poltronas para seis convidados, e mantive a cabine separada para os quatro membros da tripulação. Sempre tem alguém 6 1

pedindo: ‘Será que posso ir com você?’ Sempre tenho a desculpa certa: não há lugar.”

Javits havia equipado seu novo brinquedo, com preço na casa dos 40 milhões de dólares, com duas camas, uma mesa de conferências, chuveiro, sistema de som ambiente Miranda (Bang & Olufsen tinha um ótimo desenho e uma excelente campanha de relações pú-

blicas, mas era já coisa do passado), duas máquinas de café, um forno de microondas para a equipe e um forno elétrico para ele (porque detestava comida requentada). Javits só bebia vinho, quem quisesse dividir com ele uma garrafa de Langmeil Shiraz Barossa Valley 2004, ou um 2003 Clos Du Val era sempre bem-vindo. Mas sua adega no avião tinha todo tipo de bebida para os convidados. E duas telas de 21” de cristal líquido, sempre prontas para exibir os mais recentes fi lmes ainda inéditos nos cinemas.

O jato era um dos melhores do mundo (embora os franceses in-sistissem que o Dassault Falcon tinha mais qualidades), mas por mais poder e dinheiro que tivesse, não conseguiria mudar todos os re-lógios da Europa. Naquele momento eram 3:52 da manhã em Los Angeles, e só agora começava a sentir-se realmente cansado. Passara a noite em claro, indo de uma festa para outra, respondendo as duas perguntas idiotas que iniciam qualquer conversa:

“Como foi o seu vôo?”

Javits sempre respondia com outra pergunta:

“Por quê?”

Como as pessoas já não sabiam exatamente o que dizer, davam um sorriso amarelo, e passavam para a próxima pergunta da lista:

“Vai fi car aqui quanto tempo?”

E Javits retrucava mais uma vez: “Por quê?” Nesse momento, fi ngia atender seu celular, pedia licença, e se afastava com seus dois inseparáveis amigos.

Ninguém interessante por ali. Mas quem seria interessante para um homem que tem praticamente tudo que o dinheiro pode com-6 2

prar? Tentara mudar de amigos, procurando gente completamente afastada do meio do cinema: fi lósofos, escritores, malabaristas de circo, executivos de fi rmas ligadas à alimentação. No início, tudo era uma grande lua-de-mel, até que vinha a inevitável pergunta: “Será que gostaria de ler meu roteiro?” Ou a segunda inevitável pergunta:

“Tenho um(a) amigo(a) que sempre desejou ser ator/atriz. Você se incomodaria de encontrá-lo(a)?”

Sim, se incomodaria. Tinha outras coisas a fazer na vida além de seu trabalho. Costumava voar uma vez por mês para o Alasca, entrar no primeiro bar, embriagar-se, comer pizza, andar na natureza, conversar com os velhos moradores das pequenas cidades. Treinava duas horas por dia em sua academia de ginástica particular, e mesmo assim estava acima do seu peso, os médicos diziam que a qualquer hora ia ter um problema cardíaco. Pouco se importava com a sua forma física, o que desejava mesmo era descarregar um pouco da tensão constante que parecia esmagá-lo a cada segundo do dia, fazer uma meditação ativa, curar as feridas de sua alma. Quando estava no campo, perguntava sempre às pessoas que encontrava por acaso como era uma vida “normal”, porque já havia esquecido isso há muito tempo.

As respostas variavam, e aos poucos foi descobrindo que estava absolutamente sozinho no mundo, embora sempre cercado de gente.

Terminou compilando uma lista sobre normalidade, baseada mais no que as pessoas faziam do que nas suas respostas.

Javits olha em volta. Há um homem de óculos escuros tomando um suco de frutas, que parece alheio a tudo que o cerca, e contempla o mar como se estivesse longe dali. Bonito, cabelos grisalhos, bem-vestido. Foi um dos primeiros a chegar, devia saber quem ele era, e mesmo assim não fez o menor esforço para apresentar-se. Além do mais, tinha coragem de fi car ali, sozinho! A solidão em Cannes é um anátema, é sinônimo de que ninguém se interessa por você, da sua falta de importância ou de contatos.

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Invejou aquele homem. Com toda certeza não se enquadrava na sua “lista de normalidade” que sempre trazia no bolso. Parecia independente, livre, e gostaria muito de conversar com ele, mas estava cansado demais para isso.

Vira-se para um dos “amigos”:

— O que é ser normal?

— Você está com algum confl ito de consciência? Acha que fez alguma coisa que não devia?

Javits havia feito a pergunta errada para o homem errado. Possivelmente seu companheiro agora passaria a achar que estava arrependido de seus passos, e desejava iniciar uma nova vida. Nada disso. E mesmo que se arrependesse, era tarde demais para voltar ao ponto de partida; conhecia as regras do jogo.

— Estou perguntando o que é ser normal.

Um dos “amigos” fi ca desconcertado. O outro continua olhando à sua volta, vigiando o movimento.

— Viver como uma dessas pessoas que não tem ambição nenhuma — responde fi nalmente.

Javits tira a lista do bolso e a coloca em cima da mesa.

— Ando sempre com isso. E vou acrescentando itens.

O “amigo” responde que não pode ver isso agora, precisa prestar atenção ao que está acontecendo. O outro, porém, mais relaxado e mais seguro, lê o que está escrito: