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Don Aprile, Astorre e Caterina passavam as longas e quentes noites de verão a comer e beber no vasto jardim, onde os limoeiros e as laranjeiras saturavam o ar com o seu aroma pungente. Por vezes, o Don convidava velhos amigos de infância para jantar e um jogo de cartas. Astorre ajudava Caterina a servir as bebidas.

Nunca Caterina e o Don mostraram em público o mínimo sinal de afeto, mas toda a aldeia sabia, de modo que nenhum dos homens se atrevia a cortejá-la e todos a tratavam com o respeito devido à dona da casa. Nenhuma outra época da vida do Don foi tão agradável.

Três dias antes do fim da visita, o impensável aconteceu: Don Raymonde Aprile foi raptado quando passeava pelas ruas da aldeia. Na província vizinha de Cinesi, uma das mais remotas e atrasadas da Sicília, o chefe da cosca da aldeia, o mafioso local, era um bandido feroz e destemido que dava pelo nome de Fissolini. Senhor absoluto no seu pequeno mundo, não tinha verdadeiramente qualquer contato com as restantes coscas da ilha. Nada sabia do enorme poder de Dom Aprile, e nunca lhe passaria pela cabeça que esse poder pudesse chegar ao seu recôndito e seguro domínio. Decidiu raptar o Don e pedir um resgate por ele. A única regra que tinha consciência de estar a infringir era violar o território de uma cosca vizinha, mas o americano pareceu-lhe uma presa suficientemente rica para justificar o risco.

A cosca é a unidade básica dessa entidade conhecida pelo nome de Máfia e é geralmente constituída por membros de uma mesma família. Cidadãos perfeitamente respeitadores da lei, como advogados e médicos, podem ligar-se a uma cosca para garantirem a defesa dos seus interesses. Cada cosca é uma organização em si mesma, mas pode aliar-se a outra mais forte e poderosa. É a esta rede de interligações que habitualmente se chama Máfia. Não existe, porém, um chefe ou comandante supremo.

De um modo geral, cada cosca especializa-se, dentro do seu território, num tipo de atividade criminosa. Há a cosca que controla o preço da água e impede o poder central de construir barragens que o fariam descer, destruindo deste modo o monopólio do governo. Uma outra controlará os mercados de alimentos e produtos agrícolas. As mais poderosas da Sicília, na altura, eram a Clericuzio, de Palermo, que dominava a construção civil em toda a Sicília, e a Corleonisi, de Corleone, que tinha na mão os políticos de Roma e organizava o transporte de drogas em todo o mundo. Havia depois as pequenas coscas, que podiam exigir um tributo aos jovens românticos que quisessem fazer serenatas debaixo das varandas das respectivas amadas. Todas elas controlavam o crime. Nenhuma tolerava indesejáveis e vadios capazes de assaltar um cidadão inocente que pagasse o seu tributo. Aquele que matasse alguém para roubar uma carteira ou violasse uma mulher era sumariamente punido com a morte. Também não havia tolerância para com o adultério dentro da cosca. Os faltosos, homens ou mulheres, eram executados. Era ponto assente, todos os sabiam.

A cosca de Fissolini vivia pobremente. Controlava a venda de imagens sagradas, cobrava um tributo para proteger o gado dos lavradores e dedicava-se ao rapto de homens ricos e incautos.

E foi assim que Don Aprile e o pequeno Astorre, passeando descansadamente pelas ruas da aldeia, foram enfiados em dois velhos caminhões do exército americano pelo ignorante Fissolini e o seu bando.

Os dez homens, vestidos como camponeses, estavam armados com espingardas. Arrancaram Don Aprile da rua e puxaram-no para dentro do primeiro caminhão. Sem a menor hesitação, Astorre saltou para a caixa aberta do veículo, decidido a ficar junto do Don. Os bandidos tentaram largá-lo na estrada, mas ele agarrou-se aos varais de madeira. Ao cabo de uma hora de viagem até ao sopé das montanhas que rodeavam Montelepre, trocaram os caminhões por cavalos e burros e iniciaram a escalada dos socalcos rochosos em direção ao horizonte. Durante o percurso, o rapaz observou tudo com os seus grandes olhos verdes, mas não disse uma palavra.

Quase ao pôr do Sol, chegaram a uma gruta escondida no dédalo de ravinas e desfiladeiros da montanha. Jantaram cordeiro grelhado, pão caseiro e vinho. No acampamento, havia uma grande imagem da Virgem Maria, guardada num santuário de madeira escura esculpida à mão. Apesar de feroz, Fissolini era devoto. Tinha, além disso, a cortesia natural dos camponeses, e apresentou-se ao Don e ao rapaz. Tudo nele indicava sem margem para dúvidas que era o chefe do bando. De baixa estatura mas poderosamente constituído, como um gorila, usava uma espingarda a tiracolo e dois revólveres enfiados no cinturão. Tinha um rosto tão pedregoso como a própria Sicília, mas chispava-lhe nos olhos um brilho de jovialidade. Gostava da vida e das suas pequenas facetas, particularmente o fato de ter nas mãos um americano que valia o seu peso em ouro. E no entanto, não havia nele ponta de malícia.

― Excelência ― disse, dirigindo-se ao Don ―, não quero que se preocupe aqui com o garoto. Amanhã de manhã mando-o à cidade levar o pedido de resgate.

Astorre estava a comer animadamente. Nunca na sua vida provara uma coisa tão deliciosa como aquele cordeiro grelhado. Mas fez uma pausa para declarar num tom definitivo:

― Fico com o meu tio Raymonde.

Fissolini riu-se.

― A boa comida dá coragem. Para mostrar o meu respeito por Sua Excelência, preparei eu próprio a refeição. Usei os temperos especiais da minha mãe.

― Fico com o meu tio ― repetiu Astorre, e a sua voz soou clara, carregada de desafio.

― Foi uma noite maravilhosa ― disse Don Aprile a Fissolini, num tom firme mas não isento de brandura. ― A comida, o ar da montanha, a tua companhia. Sei que vou gostar muito de ver o orvalho, de manhã cedo. Mas depois disso, aconselho-te a levares-me de volta à minha aldeia.

Fissolini fez-lhe uma vênia respeitosa.

― Sei que é rico ― disse ―, mas será assim tão poderoso? Só vou pedir cem mil dólares em dinheiro americano.

― Isso é um insulto ― declarou o Don. ― Vais prejudicar a minha reputação. Pede o dobro. E mais cinqüenta mil pelo rapaz. Será pago. Mas a partir daí a tua vida vai ser um inferno sem fim. ― Fez uma curta pausa. ― Espanta-me que tenhas sido tão imprudente.

Fissolini suspirou.

― Tem de compreender, Excelência. Sou um homem pobre. É certo que na minha província posso deitar mão a tudo o que quero, mas a Sicília é uma terra tão amaldiçoada que até os ricos são demasiado pobres para sustentarem homens como eu. Tem de compreender que representa a minha única possibilidade de fazer fortuna.

― Nesse caso devias ter-me procurado e oferecido os teus serviços ― disse o Don. ― Tenho sempre trabalho para um homem de talento.

― Diz isso agora porque está fraco e indefeso ― replicou Fissolini. ― Os fracos são sempre generosos. Mas vou seguir o seu conselho e pedir o dobro. Embora isso me cause alguns remorsos. Nenhum ser humano vale tanto dinheiro. Mas vou soltar o miúdo. Tenho um fraco por crianças... Tenho quatro filhos, que preciso de alimentar.

Don Aprile olhou para Astorre.

― Vais? ― perguntou.

― Não ― respondeu Astorre, baixando a cabeça. ― Quero ficar consigo ― Ergueu os olhos e olhou para o tio.

― Deixa-o então ficar ― disse o Don ao bandido.

Fissolini abanou a cabeça.

― Vai-se embora. Tenho de pensar na minha reputação. Não se dirá que Fissolini rapta crianças. Porque ao fim e ao cabo, apesar de todo o respeito que tenho por Vossa Excelência, terei de mandá-lo de volta pedaço a pedaço se não me pagarem. Mas se pagarem, tem a palavra de honra de Pietro Fissolini, ninguém tocará nem num pêlo do seu bigode.